Bach: Variações Goldberg

As Variações Goldberg, catalogadas como BWV 988, de Johann Sebastian Bach marcam o auge da música barroca, com uma primorosa habilidade em composição, contraponto e estrutura. Compostas entre 1741 e 1745, esta obra arranja intricados cânones, fugas e variações. É a prova da genealidade de Bach de mesclar estilos diversos de forma harmoniosa.

A peça é formada por uma Aria, seguida de 30 variações, encerrando-se com a reprise da Aria. Está organizada em grupos de três variações, com cada terceira sendo um cânone. Bach combina estilos diversos – danças, fugas e até um quodlibet na variação final. Apesar do arcabouço simétrico subjacente, Bach emprega desvio para manter os ouvintes envolvidos, com elementos de surpresa. Se quer uma música para escuta contemplativa sem cansar, as Variações Goldberg deve estar em sua playlist.

A publicação original em Nuremberg associou o título ao cravista Johann Gottlieb Goldberg (1727 – 1756), que supostamente apresentou a obra pela primeira vez a pedido do conde Hermann Carl von Keyserlingk, como uma distração para suas noites insones. Daí o nome.

Essa composição transcende seu contexto original. É um marco do ponto de vista da estética da recepção, pois cada variação exige habilidades excepcionais do intérprete. Constitui um desafio técnico e intelectual que demanda precisão contrapontística e sensibilidade estilística.

Outro gênio musical, o pianista canadense Glenn Gould (1932 – 1982) destacou-se como o maior intérprete moderno das Variações Goldberg. Gould gravou duas versões paradigmáticas da peça, em 1956 e 1981, que oferecem leituras radicalmente diferentes e reveladoras sobre a profundidade da composição.

A primeira gravação de Gould de 1957, realizada em apenas quatro dias, foi uma interpretação fresca e dinâmica às Variações Goldberg. Caracterizada por tempos ousados e articulação precisa, essa interpretação enfatizava a clareza contrapontística. A técnica de staccatissimo de Gould – que separava as vozes de maneira cristalina – revolucionou a apreciação da peça, tornando-se uma referência para gerações futuras.

A regravação de 1981 é um contraste marcante. Aqui, Gould opta por tempos mais lentos e introspectivos, demonstrando uma compreensão mais madura da arquitetura musical de Bach. Essa versão, premiada com dois Grammy Awards, possuia uma distribuição proporcional das variações, em que cada parte se interliga musicalmente.

Glenn Gould enfrentava dores crônicas nas costas e outros desconfortos musculares, intensificados por sua dedicação extrema ao piano. Sua postura ao tocar, curvado sobre as teclas, era uma solução improvisada para lidar com essas limitações físicas. Um elemento icônico de sua trajetória foi o banco modificado que usava ao piano. Criado por seu pai em 1953, o banco era originalmente uma cadeira dobrável de madeira, adaptada com pernas encurtadas para atender às necessidades ergonômicas de Gould. Essa modificação permitia que ele adotasse uma postura única, com as mãos quase horizontais, o que influenciava sua técnica peculiar, na qual parecia martelar e puxar as teclas ao mesmo tempo. O banco, que ele carregava consigo desde a infância, tornou-se parte inseparável de sua identidade artística, assim como seus movimentos excêntricos e vocalizações durante as performances.

Além disso, Gould era hipocondríaco e vivia preocupado com sua saúde. Evitava contato físico, usava luvas até em dias quentes e adotava um estilo de vida voltado a minimizar riscos, como evitar viagens frequentes. Essa preocupação obsessiva também se refletia em sua busca por controle absoluto: exigia ambientes perfeitamente ajustados, tanto no estúdio quanto na prática, para mitigar ansiedades e desconfortos.

Paradoxalmente, essas limitações físicas e emocionais contribuíram para sua atenção meticulosa aos detalhes e sua abordagem introspectiva à música, características que definiram sua genialidade.

No auge de sua popularidade com suas audiências, em 1964, Gould abandonou os concertos públicos. Queria o ambiente cntrolado dos estúdios de gravação. O estúdio era mais que um espaço técnico; era um verdadeiro laboratório criativo, onde podia explorar tomadas múltiplas e edições detalhadas, sempre em busca da perfeição musical que tanto almejava.

Douglas Hofstadter, autor do seminal Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid, abordou as Variações Goldberg de Johann Sebastian Bach como uma obra-prima que exemplifica suas ideias sobre ciclos estranhos (strange loops), padrões recursivos e a interconexão entre estrutura e criatividade.

Hofstadter considera as Variações Goldberg uma manifestação brilhante de loops estranhos, onde uma ideia simples – a Aria – é transformada em camadas de complexidade ao longo de 30 variações. Ele sugere que cada variação é uma transformação recursiva da ideia original, mas, ao mesmo tempo, mantém uma conexão inquebrável com a base, criando uma sensação de “retorno” no final, quando a Aria é repetida.Para Hofstadter, essa recursividade ressoa com conceitos matemáticos e lógicos, como os teoremas autorreferenciais de Gödel, que mostram como sistemas aparentemente simples podem conter infinitas profundidades.

Hofstadter aprecia como Bach organiza as variações em grupos estruturais, especialmente com a inclusão de cânones a intervalos crescentes (segunda, terceira, quarta, etc.), culminando no quodlibet. Ele vê essa organização como um exemplo de “beleza formal”, onde a música não é apenas emocional, mas também uma construção lógica quase arquitetônica. Esse paralelismo com a matemática reflete a visão de Hofstadter sobre como a mente humana encontra beleza nas estruturas profundas de sistemas interligados. Hofstadter usa as Variações Goldberg para ilustrar como sistemas criativos podem emergir de restrições. Bach toma um tema fixo e um baixo contínuo, mas a partir dessas limitações cria um universo musical vasto e diverso. Para Hofstadter, isso é análogo à maneira como a linguagem ou o DNA operam: um conjunto limitado de elementos (notas, letras, genes) pode gerar uma variedade infinita de expressões.

3 comentários em “Bach: Variações Goldberg

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      1. Vou procurar o livro, valeu pela dica! E acho que você usou a melhor palavra: sublime.

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