Imagine colocar todos os indesejáveis da sociedade em uma grande gaiola de palha e incendiá-la. Esse sacrifício cruel, supostamente histórico, inspirou filmes, palcos de rock and roll e festivais de fogueiras. Mas, até que ponto isso é mera invenção?
Segundo Júlio César, a religião druida dos celtas realizava um sacrifício humano com o “Homem de Vime” ou o “Homem de Palha”, uma enorme estrutura de palha e madeira. Na época, isso soou um tanto bizarro tanto quanto hoje.
Apesar de suas origens antigas e da imprecisão histórica contestada, o curto trecho do “Homem de Vime” pervade cultura contemporânea. Tal presença é vista na representação no cinema, na música e em festivais modernos como o Burning Man, tudo pelo fascínio por temas de sacrifício humano, ritual em comunidade e a natureza cíclica da destruição e da renovação. Ahistórico ou não, os motivos para queimar um homem de palha podem ser compreendidos pela antropologia da religião.
A propaganda de Júlio César

Em seu relato sobre as Guerras Gálicas, César descreve assim a prática celta:
“A nação de todos os gauleses é extremamente devota a ritos supersticiosos; e, por essa razão, aqueles que são afligidos por doenças especialmente graves e os que estão envolvidos em batalhas e perigos sacrificam homens como vítimas, ou juram que o farão, e empregam os druidas como executores desses sacrifícios. Eles acreditam que, a menos que a vida de um homem seja oferecida pela vida de outro homem, a mente dos deuses imortais não pode ser tornada favorável. Eles têm sacrifícios desse tipo ordenados para fins nacionais. Outros possuem figuras de grande porte, cujos membros, feitos de vime, são preenchidos com homens vivos, e, ao serem incendiados, os homens perecem envoltos nas chamas. Consideram que a oferenda daqueles que foram pegos em furto, roubo ou qualquer outro delito é mais aceitável aos deuses imortais; mas, quando não há disponibilidade desse tipo, recorrem à oferenda até mesmo dos inocentes.” (Comentário sobre as Guerras Gálicas, 6.16)
César se refere à religião druídica como ritualística e carregada de sacrifícios humanos, descrevendo essas cerimônias com minúcias para criar uma imagem de crueldade e selvageria entre os celtas. Contudo, essa narrativa é questionada. Essas descrições são exageradas, talvez até inventadas, para justificar a invasão romana. A arqueologia encontrou poucas evidências de sacrifícios humanos sistemáticos entre os celtas. César teria sido o único a relatar tais sacrifícios no boneco de palha (outros autores, como Estrabão, são derivados dele). Assim, esses relatos poderiam ser parte da propaganda militar romana para desumanizar o inimigo.
Recepção e adaptações
Independente de César, há várias práticas de queimar bonecos humanos em diversos povos. Aqui falaremos de algumas delas no mundo ocidental.
A imagem do “Homem de Vime” ganhou novas formas na cultura popular, como o filme britânico de 1973, The Wicker Man, dirigido por Robin Hardy. Este clássico do horror folk apresenta um policial puritano investigando o desaparecimento de uma jovem em uma ilha dominada por um culto neopagão liderado por Lord Summerisle (interpretado por Christopher Lee). Embora não mostre o Homem de Vime de forma literal até o desfecho, o filme explora virou um cult, um marco no cinema de horror britânico. A versão americana de 2006, uma refilmagem ruizinha com Nicolas Cage como protagonista, reciclou a narrativa para um novo público, mas não alcançou o impacto do original.
A influência do homem de vime não ficou restrita ao cinema. Na turnê Brave New World da banda Iron Maiden, o palco trazia uma grande estrutura mecânica de vime, uma referência visual ao filme de 1973 e à canção “The Wicker Man”.

Outros rituais e festivais modernos evocam o simbolismo de grandes bonecos em chamas. O festival Burning Man, realizado anualmente no deserto de Nevada, EUA, é um evento de autoexpressão e arte comunitária. Na rave, uma enorme figura de madeira é queimada ao final, celebrando a transformação e o renascimento. Apesar de inspirado pela ideia de uma queima ritualística, o Burning Man adota princípios diferentes, focando na criação de uma cidade temporária e na expressão artística.
Na Suécia, a tradição do Bode de Gävle, um grande boneco de palha construído a cada Natal, tem um destino similar ao do Homem de Vime, sendo frequentemente queimado. E nas culturas ibéricas ocorre a Malhação do Judas com um ritual onde um boneco, representando Judas Iscariotes, é linchado e queimado em um ato simbólico de justiça punitiva e purificação. Também no norte de Portugal, há a festa dos Caretos. Há a queima de um careto, uma gigantesca efígie humana com chifres, enquanto jovens correm ao seu redor, denotando a derrota do mal e a destruição das coisas passadas no ano-velho.
Interpretações antropológicas

As interpretações antropológicas sobre o ritual do Homem de Vime proporcionam perspectivas sobre as motivações e significados por trás dos sacrifícios simbólicos. Este ritual, com suas nuances de violência ritualizada e seu propósito de pacificação divina, dialoga com teorias sobre o sacrifício como um ato de expiação penal substitutiva, apaziguamento ou renovação social. Nesta seção, será analisado como as teorias de René Girard, Mircea Eliade e James Frazer servem para interpretar o ritual do Homem de Vime como uma prática complexa, que vai desde a manutenção da ordem social e alívio das tensões coletivas até uma conexão com o sagrado. Comparações com rituais modernos, como o Burning Man, também reúne temas como a destruição e o efêmero.
Tanto o relato do Homem de Vime quanto a teoria da expiação penal substitutiva envolvem a ideia de sacrifício de inocentes como um meio de apaziguar uma força superior. Na descrição de César, os gauleses acreditavam que sacrifícios humanos, especialmente realizados pelos druidas, eram essenciais para obter o favor dos deuses em períodos de crise, como guerras ou doenças. A morte de um indivíduo poderia, assim, substituir a de outro, restaurando o equilíbrio divino. Em algumas vertentes teológicas ocidentais, a teoria da expiação penal substitutiva constroi um mito da morte de Jesus Cristo na cruz como um sacrifício vicário pelos pecados da humanidade, satisfazendo a justiça divina e restaurando a relação entre um Deus irado e incapaz de perdoar e as pessoas intrinsicamente incapazes de apaziguá-lo por seus pecados inerentes. Em ambos os casos, o sacrifício aparece como essencial para a reconciliação com o divino, envolvendo também um aspecto perturbador relacionado à inocência. Quando criminosos não estavam disponíveis, César relata que inocentes eram oferecidos, espelhando o papel de Cristo, considerado sem pecado, mas que assume os pecados de todos. Contudo, há diferenças. Enquanto César descreve os rituais gauleses de forma negativa, reforçando preconceitos romanos e justificando a conquista, a teoria da substituição penal argumenta que a morte de um inocente produz graça e redenção.
A teoria mimética de René Girard propõe que o desejo humano é imitativo e leva frequentemente à rivalidade e ao conflito. No contexto do Homem de Vime, a queima da efígie representa o mecanismo do bode expiatório. Ao escolher sacrificar um indivíduo, a comunidade alivia tensões coletivas e restaura a ordem social. Na perspectiva girardiana, esse ato reflete a dependência histórica da humanidade no uso do bode expiatório para administrar a violência e o conflito nas sociedades. A ritualização desse sacrifício, onde a vítima é demonizada e depois quase divinizada, reforça sua tese de que tais rituais ocultam a violência inerente à cultura humana, restabelecendo temporariamente a paz.
Já teoria da religião de Mircea Eliade, focada no sagrado e o profano, sugere que rituais conectam os participantes a uma realidade transcendente, permitindo-lhes reencenar mitos fundadores. Nesse sentido, o Homem de Vime simboliza uma estrutura arquetípica de morte e renascimento. O sacrifício não é apenas um ato de violência, mas um meio de renovar o vínculo da comunidade com o divino. A queima do Homem de Vime, com vítimas ou não, seria uma expressão do sagrado que reforça a identidade cultural e a continuidade através da reencenação mitológica. Tais práticas reforçariam os valores e crenças da sociedade. A vítima seria entregue à divindade, renovando os termos de relacionamento em aliança entre a divindade e o povo.
Uma perspectiva clássica, a James Frazer, em O Ramo de Ouro, explora temas de magia, religião e mito, embora com generalizações problemáticas. Frazer argumentou que sacrifícios antigos visavam garantir a fertilidade e a prosperidade comunitária, baseando-se em uma compreensão primitiva dos ciclos da natureza. No contexto do Homem de Vime, o sacrifício seria um ato desesperado de uma comunidade sob ameaça, refletindo a ideia de Frazer de que sociedades recorrem a violências rituais quando acreditam que isso trará benefícios tangíveis, como abundância agrícola ou proteção contra desastres.
Além dessas perspectivas teóricas, o caso do Burning Man representa vários anseios e motivações. A princípio, é um empreendimento comercial destinado a consumidores desejosos de terem experiências-limites. Contudo, há elementos subjacentes.
O Burning Man, sob uma perspectiva antropológica, apresenta-se como um ritual moderno que celebra a efemeridade e a criação coletiva, expressando tensões e contradições centrais da vida contemporânea. Realizado anualmente no deserto de Nevada, o evento transcende o formato de um festival comum, pois assume uma dimensão quase religiosa e ritualística, com forte ênfase em valores de comunidade, estética, autossuficiência, criatividade e destruição intencional.
Katherine K. Chen, em Enabling Creative Chaos, analisou a estrutura organizacional e a logística do Burning Man. O evento mantém um equilíbrio entre o caos criativo e a segurança. A cidade temporária construída no deserto, conhecida como Black Rock City, opera com regras bem definidas, mesmo que as expressões artísticas e a liberdade individual sejam incentivadas. Esse contraste entre a ordem e o caos permite que os participantes experimentem um senso de transcendência e pertencimento, criando um ambiente onde a “desordem controlada” facilita a expressão autêntica e a experimentação social.
Brian Doherty, em This is Burning Man, oferece uma visão panorâmica da história e cultura do evento, explorando como as experiências de quem participa do Burning Man são imersivas e transformadoras. Segundo Doherty, o Burning Man funciona como um espaço liminal – um intervalo entre a vida cotidiana e uma realidade alternativa onde normas convencionais são suspensas. Nesse contexto, a destruição ritual do “Homem de Palha” (Burning Man) ao final da celebração simboliza a renovação, permitindo que a comunidade se una em um ato de catarsis coletiva, onde as estruturas convencionais de valor e posse são temporariamente abandonadas.
Já Lee Gilmore e Mark Van Proyen, em AfterBurn, apontam para o significado espiritual e cultural do Burning Man. O evento se tornou uma espécie de novo rito de passagem, particularmente em uma sociedade onde a espiritualidade institucionalizada tem perdido força. O evento reflete uma busca por autenticidade e uma espiritualidade construída pela experiência direta, semelhante ao papel que os rituais têm desempenhado ao longo da história para conectar as pessoas com o sagrado e para reforçar os laços comunitários.
Por fim, o Burning Man pode ser interpretado como uma resposta ritualística aos paradoxos modernos: busca-se a liberdade total em um espaço controlado, o autoexpressão em meio à efemeridade e a comunhão em uma sociedade fragmentada. Esses aspectos ressoam com tradições antropológicas de sacrifício, destruição e renovação, onde o ato de queimar simboliza tanto o fechamento de um ciclo quanto o potencial para recriar novas possibilidades no ano seguinte. Assim, o Burning Man se destaca como uma prática cultural contemporânea que reflete e desafia, simultaneamente, as dinâmicas de uma sociedade marcada pela transitoriedade e pelo desejo de conexão.
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O Homem de Vime, de um suposto ritual celta descrito por Júlio César, retrata uma constante necessidade de ritual e sacrifício do ser humano. A grande efígie de palha seria preenchida com vítimas humanas e incendiada em um ato de sacrifício. Embora questionável historicamente, essa imagem permaneceu na cultura contemporânea, influenciando filmes, festivais como o Burning Man e tradições regionais, como a queima do Judas. A antropologia interpreta o sacrifício do Homem de Vime como um ritual de expiação e renovação social, explorando as motivações coletivas por trás da destruição ritualística. Estas práticas refletem um anseio humano profundo por transformação e por expressões de espiritualidade que unem e purificam a comunidade.
SAIBA MAIS
Alves, Leonardo Marcondes. O violento e o sagrado em dois filmes de suspense
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