Zora Neale Hurston: Seus olhos viam Deus

O romance Their Eyes Were Watching God, escrito pela antropóloga Zora Neale Hurston (1891-1960), é um marco da literatura afro-americana por vários motivos. Retrata a busca de Janie Mae Crawford por amor e autoconhecimento, inserida nas tensas relações de classe e etnia dos Estados Unidos do início do século XX. O livro foi, em um momento, esquecido e depois redescoberto por sua complexidade de trama, pelo processo de escrita de Hurston, sua formação antropológica e pela recepção e impacto da obra ao longo dos anos. Esses fatores serão aqui apresentados.

A vida e vicissitudes de Janie Mae Crawford

A protagonista é Janie Mae Crawford, uma mulher negra que volta à sua cidade natal, Eatonville, Flórida, após um longo período fora. Janie compartilha sua vida com sua amiga Pheoby, revelando suas experiências de amor, perda e liberdade. Criada por sua avó, Nanny, uma ex-escrava, as aspirações de Janie, como menina negra no sul americano, seriam limitadas. Contudo, ela encara relacionamentos e possibilidades de realização social e sentimental fora das limitações de sua situação. E, nisso, vive amor e tragédia.

O primeiro casamento de Janie, com Logan Killicks, simboliza segurança sem amor. Essa união com o fazendeiro é arranjada por sua avó, refletindo expectativas sociais em vez de escolha pessoal. Logan é um homem abastado de classe média dentro da comunidade afro-americana. Seu status decorre da propriedade de terras, uma conquista significativa para os homens negros naquela época, refletindo também a estratificação social interna, então crescente, da comunidade afro-americana. A natureza opressiva de Logan ensina a Janie que o casamento não pode ser apenas um meio de sobrevivência; ele requer conexão emocional e respeito mútuo. Seu tratamento de Janie como uma trabalhadora, em vez de uma parceira, faz com que ela perceba que deve buscar uma vida que realize seus sonhos, em vez de uma vida imposta a ela.

O segundo marido de Janie, Joe Starks, personifica ambição e controle. Inicialmente atraente devido ao seu charme e status, Joe eventualmente se torna dominador, sufocando a voz e a individualidade de Janie. Bem mais velho que Janie, Joe é um ambicioso empresário que se torna prefeito de Eatonville, uma cidade predominantemente negra. Politicamente influente, sua riqueza e poder inicialmente atraem Janie, mas Joe acaba impondo um controle estrito sobre a esposa, reduzindo-a a um símbolo de seu status, em vez de tratá-la como uma parceira igual. Ele insiste em controlar sua imagem pública, chegando a forçá-la a esconder seu cabelo, que simboliza sua beleza e liberdade. Através desse relacionamento, Janie aprende sobre os perigos da dinâmica de poder no casamento e reconhece a importância da autoafirmação. A morte de Joe marca um ponto de virada, permitindo que Janie recupere sua identidade após anos de subserviência.

Janie então conhece Tea Cake, um homem mais jovem e cheio de vida, com quem vive uma relação intensa e libertadora. Tea Cake é um pobre trabalhador braçal que vai de fazenda em fazenda em busca de trabalho. Eles se mudam para os Everglades, onde Tea Cake representa o amor verdadeiro e a igualdade. Ao contrário de seus casamentos anteriores, vivem em respeito mútuo, alegria e conexão emocional. Tea Cake permite que Janie se expresse plenamente, ajudando-a a perceber seu potencial para a felicidade. Sua parceria incorpora o ideal de companheirismo, pois ambos os parceiros apoiam as aspirações um do outro. Mesmo após a trágica morte de Tea Cake, Janie reflete sobre o tempo que passaram juntos com carinho, o que significa que o amor verdadeiro pode deixar um impacto duradouro na vida de uma pessoa.

Mas a felicidade tem um fim. Janie e Tea Cake percebem a vinda iminente de um furacão quando notam que os índios seminoles fogem para terras mais altas, enquanto os outros trabalhadores permanecem, focados nos ganhos financeiros imediatos da colheita de feijão.

Quando o furacão chega, traz consigo imagens vívidas de ventos gritando e objetos se quebrando. O furacão resume a força incontrolável da natureza ao mesmo tempo que retrata a vulnerabilidade humana e a imprevisibilidade da vida. Durante o desastre, Tea Cake é mordido por um cachorro raivoso ao tentar salvar Janie. Posteriormente, a raiva afeta seu comportamento, tornando-o violento e paranoico devido à doença. Janie, em legítima defesa, é forçada a matá-lo. Ao final do romance, Janie retorna a Eatonville após ser absolvida, tendo conquistado sua independência e paz interior.

A composição da obra

Zora Neale Hurston escreveu Seus olhos viam Deus durante uma viagem ao Haiti, em 1936, com o apoio de uma bolsa do Guggenheim. Sua abordagem literária combinou narrativa pessoal com observações antropológicas da cultura negra do sul dos Estados Unidos e do Caribe. O uso de dialetos regionais e o retrato fiel das tradições afro-americanas conferem ao romance uma profundidade etnográfica que enriquece a narrativa. A cena do furacão, por exemplo, foi inspirada pela própria experiência de Hurston durante um furacão devastador nas Bahamas, em 1929.

A autora

Nascida em 1891, em Eatonville, Flórida, uma das primeiras cidades afro-americanas incorporadas nos Estados Unidos, Hurston cresceu em um ambiente culturalmente vibrante, que moldou profundamente seu trabalho. Estudou antropologia na Howard University e, posteriormente, no Barnard College, sob a orientação de Franz Boas, um dos pioneiros da disciplina. Hurston realizou pesquisas de campo no sul dos Estados Unidos e no Caribe, documentando tradições orais e práticas culturais afro-americanas. Sua carreira, no entanto, foi marcada por dificuldades financeiras, apesar de ter escrito muitas obras acadêmicas e literárias. Sofreu com a pobreza em seus últimos anos.

Viéses antropológicos

O treinamento antropológico de Hurston teve um impacto em sua produção literária. A autora aplicou a abordagem etnográfica em seus romances, contos e peças de teatro, retratando a vida cotidiana das comunidades negras. Em Their Eyes Were Watching God, capturou as nuances da fala vernacular e dos costumes de Eatonville e dos Everglades. Sua formação antropológica permitiu que Hurston trouxesse autenticidade e complexidade à representação das experiências afro-americanas.

Hurston também investigou práticas religiosas afro-caribenhas, como o vodu no Haiti, onde documentou rituais e observou fenômenos como o “zumbi”, temas que abordou em Tell My Horse (1938). Sua pesquisa antropológica influenciou diretamente sua ficção, acrescentando uma camada profunda de realismo cultural.

A combinação de fala e silêncio de Janie faz um contraponto progressivo na narrativa. Hurston demonstra com maestria como a linguagem desempenha um papel crucial na jornada de Janie. Inicialmente silenciada pelos seus casamentos opressivos, ela aprende a afirmar-se através da fala, encontrando poder em sua voz. O romance enfatiza que tanto a fala quanto o silêncio podem ser fontes de força.

A frase “seus olhos viam Deus” é ambígua. Por um lado, sugere que, embora as pessoas possam se sentir impotentes diante da violência da natureza, elas também estão conscientes de uma força maior em jogo, provocando reflexão sobre o seu lugar no universo. Por outro lado, possui conotações de questionamento, tal como Jó diante de Javé. As experiências de Janie – suas lutas, amores e perdas – fazem parte de uma jornada espiritual mais ampla, onde ela busca significado e realização além das restrições sociais. Como a religião é algo social, a comunidade desempenha um papel significativo na formação da percepção de Deus. As crenças são compartilhadas em tempos de crise, reforçando a experiência coletiva que proporciona conforto e contexto para o sofrimento.

A recepção

Their Eyes Were Watching God recebeu uma recepção mista quando foi publicado. Autores da Renascença do Harlem, como Richard Wright e Alain Locke, criticaram a obra por não abordar diretamente questões políticas e raciais. Wright, em particular, acusou Hurston de simplificar a experiência negra para agradar a leitores brancos. No entanto, outros críticos reconheceram o mérito artístico da obra, incluindo Otis Ferguson, que elogiou o retrato poético da vida afro-americana.

O romance, porém, não foi um sucesso comercial na época, vendendo menos de 5.000 cópias antes de sair de circulação. Somente na década de 1970, com o ensaio de Alice Walker, o livro começou a ganhar a aclamação que merecia. Walker destacou a originalidade e importância da obra, ajudando a reavivar o interesse por Hurston.

Hoje, Their Eyes Were Watching God é considerado um dos grandes romances do século XX e uma pedra angular da literatura afro-americana. O retrato de Janie Mae Crawford como uma mulher negra em busca de sua identidade ressoou com leitores e críticos, reafirmando a importância de Hurston no cânone literário. A obra ganhou uma adaptação para a televisão em 2005, estrelada por Halle Berry como Janie Crawford, e faz parte da literatura exigida em muitos cursos universitários norte-americanos.

Através da exploração de temas como liberdade, amor e autoconhecimento, Hurston desafiou as noções tradicionais de gênero e raça. Seu trabalho antropológico criou um realismo literário, documentando a vida e a cultura afro-americana de forma autêntica e complexa. Hurston, que durante sua vida enfrentou dificuldades e invisibilidade, hoje é celebrada como uma das maiores vozes da literatura americana.

SAIBA MAIS

Hurston, Zora Neale. Their Eyes Were Watching God. Philadelphia: J.B. Lippincott Company, 1937.

Hurston, Zora Neale. Seus olhos viam Deus. Tradução de Marco Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 2021.

Walker, Alice. “Looking for Zora.” Ms. Magazine, January 1975.

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