A obra Calibã e a Bruxa: Mulheres, o Corpo e a Acumulação Primitiva, da filósofa Silvia Federici, disseca o controle sobre a mulher e os comuns nas origens do capitalismo. Distante do foco tradicional marxista no trabalho industrial e na luta de classes, Federici coloca as experiências das mulheres no centro, revelando como sua subjugação foi fundamental para o nascimento violento da sociedade capitalista.
O livro conecta as caças às bruxas dos séculos XVI e XVII a um projeto maior de acumulação primitiva — o processo de destruição de recursos e estruturas comunais para abrir caminho ao trabalho assalariado e às relações sociais capitalistas.
No cerne de Calibã e a Bruxa está uma releitura feminista da história. Federici argumenta que as caças às bruxas não foram apenas um episódio bizarro de histeria coletiva, mas uma campanha deliberada para controlar o poder reprodutivo das mulheres e desmantelar formas de organização social comunais. Ao apagar o conhecimento feminino sobre cura, obstetrícia e herbologia — práticas profundamente ligadas à vida comunitária e à natureza —, essas perseguições prepararam o terreno para o controle patriarcal sobre os corpos e o trabalho.

A Bruxa como símbolo de resistência
Federici traça um paralelo provocador entre a bruxa e Calibã, a figura escravizada e rebelde de A Tempestade, de Shakespeare. Ambos representam os marginalizados e os despossuídos: Calibã simboliza aqueles que foram privados de suas terras e forçados à servidão, enquanto a bruxa encarna a resistência ao controle patriarcal e capitalista sobre os corpos e o trabalho das mulheres.
Essa conexão destaca como o capitalismo inicial se sustentou não apenas no cercamento dos comuns — a privatização de recursos compartilhados —, mas também em uma divisão sexual do trabalho que confinou as mulheres ao trabalho doméstico e reprodutivo não remunerado. As caças às bruxas, segundo Federici, foram uma afirmação violenta da autoridade patriarcal, garantindo uma força de trabalho estável para a economia capitalista emergente.
Capitalismo, Corpos Femininos e a Visão Mecanicista
A análise de Federici vai além da economia para mostrar como o surgimento do capitalismo remodelou a relação da humanidade com o corpo e a natureza. Silvia relaciona a perseguição de mulheres associadas a remédios naturais e ao conhecimento comunal com a ascensão de uma visão de mundo mecanicista, que separou a mente do corpo e a humanidade da natureza. Essa mudança intelectual não apenas justificou a exploração do meio ambiente, mas também a desumanização e o controle das capacidades reprodutivas das mulheres.
A crítica de Federici parece especialmente relevante em uma era em que a desigualdade econômica, a degradação ambiental e a opressão de gênero permanecem generalizadas. Convoca para resgatar a figura da bruxa como símbolo de resistência oferece um poderoso grito de mobilização para as lutas contemporâneas contra o capitalismo e o patriarcado. A bruxa, outrora demonizada, agora pode ser vista como uma defensora do conhecimento comunal e uma opositora das estruturas de poder exploradoras.
Mais do que uma crítica histórica, Calibã e a Bruxa nos desafia a repensar as narrativas sobre as origens do capitalismo e seu impacto contínuo. O trabalho de Federici destaca que a libertação exige confrontar não apenas as injustiças econômicas, mas também as forças patriarcais e culturais que as sustentam.
O legado de Federici
A filósofoa Silvia Federici é professora universitária e ativista ítalo-americana. Desde a cofundação do Coletivo Internacional Feminista, em 1972, até sua participação na campanha Salários para o Trabalho Doméstico, ela tem estado na linha de frente dos movimentos feministas e anticapitalistas. Calibã e a Bruxa é apenas um exemplo de sua crítica incisiva à dependência do capitalismo em relação à opressão de gênero.
O trabalho de Federici serve como um acerto de contas histórico e um plano para imaginar um futuro mais equitativo. Sua mensagem é clara: a luta por justiça deve incluir as mulheres, o meio ambiente e o desmantelamento dos sistemas que exploram ambos.
SAIBA MAIS
Federici, Silvia. Caliban and the Witch. Autonomedia, 2004.
Federici, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Editora Elefante, 2023.

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