As aventuras de Buluquia

A Rainha Serpente então relatou ao viajante Hasib a aventura de um jovem, Buluquia.

Na cidade do Cairo, onde becos labirínticos sussurram segredos antigos, Josias, o rei dos Banu Israel, uma figura sábia e piedosa, curvava-se sob o peso de tomos inescrutáveis. Seu filho era chamado Baluquia. O jovem seria destinado a trilhar um caminho além da compreensão. 

Após a morte do pai, o aventureiro percorria os aposentos da solidão. Por acaso descobriu uma parede falsa que levava a um túnel. Desceu pelos caminhos escuros até que se deparou com uma coluna de mármore branco, adornada com um caixão de ébano.

Dentro do caixão de ébano estava outra arca, fundida em ouro — uma relíquia que embalava o Livro Santo. Mas como os versos antigos revelaram sua sabedoria, a alma de Buluquia foi arrebatada, enredada pelas revelações do Profeta vindouro.

Um propósito brotou dentro dele. Fez o voto de atravessar os reinos em uma busca da imortalidade para, no futuro, conhecer o Profeta e as glórias do futuro. Outra versão diz que encontrou sob a coluna de mármore um pergaminho em grego com instruções para encontrar o anel ou sinete de Salomão, objeto capaz de conceder imortalidade e poder sobre todos os viventes.

De qualquer forma, o príncipe renunciou ao trono para sua jornada. A busca de Buluquia abriu suas asas, guiando-o por paisagens intocadas e por longínquos reinos.

Depois de naufragar em uma ilha nas costas sírias, sua jornada o levou à antiga cidade de Jerusalém. Nas vielas da cidade santa conheceu Affan, de quem os vizinhos cochichavam com medo que fosse um feiticeiro ganancioso.

Affan era obcecado em encontrar o sepulcro do rei Salomão — local de imensuráveis riquezas. Obscuro dentro daquela tumba jazia um artefato de imenso poder: um anel que lançava seu domínio espectral sobre homens, feras e os enigmáticos gênios. Affan convenceu Buluquia que com esse anel teria a longevidade necessária para alcançar a era vindoura.

Os dois homens compactuam jornadas até os limites do mundo.

Cruzaram o deserto até encontrarem o reino subterrâneo da Rainha Yamlika ou Tamilica. Percorreram um labirinto sem fim e esperavam pelo pior. Mas, debaixo da terra perceberam que não estavam sozinhos. seguidores da enigmática Rainha Yamlika emergiram das sombras. Sibilos, silvos e tilintar dos chocalhos anunciavam a presença de milhares de serpentes.

Apesar do número enorme de répteis, sua rainha não era peçonhenta. Todavia, esses viajantes tinham seus lados traiçoeiros.

Os dois aventureiros aprisionam a Rainha Serpente — uma serpente dourada com rosto de mulher — em uma jaula.

Apesar de seu aspecto feroz, a Rainha Serpente era afável. Ao escutar suas histórias, se dispôs a ajudá-los. Ofereceu a escolha de duas plantas cujos suco mágico dão poderes. Uma planta permite imortalidade até o soar da primeira trombeta, a outra permite cruzar os Sete Mares. Escolheram a última.

Após recolher a erva e se aproximar do oceano, espremeram o suco da erva, ungiram a sola dos pés. Então pisaram no oceano e começaram a caminhar por sua vasta extensão. Semanas se passaram enquanto eles caminhavam sobre a superfície do oceano, alimentando-se dos peixes do mar. Caminharam meio às sombrias tempestades e ondas violentas.

Finalmente chegam à ilha da tumba do Rei Salomão. Ao descobrirem o corpo decaído, mas revestido de trajes majestáticos, hesitam. Buluquia fica recitando encantos enquanto Affan tenta recuperar o anel do corpo. Aqui as versões divergem. Uma diz que, nervoso, Buluquia se atrapalhou nas palavras mágicas e Affan derramou em si e no cântaro do suco mágico uma gota de diamante líquido e virou cinzas.

À medida que a jornada se desenrolava, uma caverna além das marés insondáveis ​​aguardava – uma cúpula de pavor, um eco do tempo esquecido. Em sua luminescência espectral jazia um trono, sobre o qual repousavam os restos mortais do rei Salomão, envolto em esplendor real. Uma serpente enrolada, guardiã e malevolência encarnada, jazia ao lado dele. O canto de Affan, uma invocação que irritou abismos antigos, buscava arrancar o anel amaldiçoado de Salomão de seu sono espectral.

Mas os olhos da serpente, brilhando com malevolência, irradiavam um poder terrível. Um terrível silvado foi emitido, mas ignorado pela ambição de Affan. Quando estendeu a mão para o anel, uma chama de relâmpago infernal irrompeu dos olhos da serpente, reduzindo-a a nada além de poeira cinzenta.

O terror tomou Buluquia. A aniquilação de seu companheiro o lançou em desespero. Foge do túmulo, mas encontra um anjo. Gabriel informa-lhe que não pode obter nem o anel nem beber da fonte da vida.

Buluquia segue sua jornada, arrependido.

Chega a uma viagem a uma ilha com frutos guardados por um gigante. O guardião impede-o de comer frutas, dizendo que elas pertencem ao rei Sakhr.

Daí aparece um exército de demônios liderado pelo próprio Rei Sakhr. O diabólico leva-o para um banquete no infernal Monte Qaf. O Rei Sakhr narra a criação do mundo, a vinda do Profeta, a punição dos infiéis e os segredos da fonte da vida. 

O Monte Qaf contorna o mundo e Buluquia visita às diversas ilhas. Conhece fauna e flora excêntricas, vê as almas penadas, anjos, animais de dimensões continentais. Em seu périplo de retorno à casa, nas asas de um passáro gigante branco, passa por uma ilha onde um homem espera a morte. A figura vestida de tristeza, um homem chamado Janshah espera até o dia de sua morte. O homem ansioso então relatou a Buluquia sua história.


Essas são as noites 486 e 533 das As Mil e Uma Noites, conforme os números das noites na tradução de Malcolm Lyons e Ursula Lyons da Penguin Classic (Irwin 2010). A novela de Buluquia (Baluqyia, Bulukia ou Buluqyia) cobre cerca de 100 páginas. São três versões dessa jornada que antecede esse Indiana Jones: al-Tha’labi, Mardrus e Richard Francis Burton.

A versão de al-Tha’labi, um hagiógrafo muçulmano de origem persa morto em 1036, parece ter sido compilada de contos populares. O orientalista franco-egípcio Jean-Charles Mardrus (1868-1949) compilou o conto em sua versão de As Mil e Uma Noites a partir de uma fonte desconhecida. Trata-se de uma tradução bem livre e criativa, adaptada para os leitores ocidentais. A versão mais conhecida e literal deriva da tradução do igualmente aventureiro Richard Francis Burton (1821-1890) dessa coletânea, publicada em 1888. Aqui, apresento uma fusão das versões.

As origens dessas aventuras são desconhecidas, mas repetem elementos — personagens, tropes, símbolos — comuns a outras literaturas. São visíveis lendas judias, cristãs, do Romance de Alexandre, das périplas, dentre outros. Túmulos com tesouros secretos, serpentes, jornada em busca de aventura — são todos elementos hoje bem familiares.Há quem diga, como Stephanie Dalley, que remonte ao épico de Gilgamesh, fazendo-a uma das mais duradouras estórias em contínua narração.

SAIBA MAIS

Brinner, William M., trans. ‘Ara’is al-majalis fi qisas al-anbiya, or: Lives of the Prophets. de Abu Ishaq Ahmad ibn Muhammad ibn Ibrahim al-Tha’labi. Leiden: Brill, 2002.

Burton, Richard Francis.”The adventures of Bulukyia”. The 1001 nights. 1888.

Dalley, Stephanie. “Gilgamesh in the Arabian Nights.” Journal of the Royal Asiatic Society. 1.1 (April 1991): 1–17.

Irwin, Robert, ed. The Arabian Nights: Tales of 1,001 Nights. Penguin UK, 2010.

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