Kierkegaard: Temor e tremor

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Até que ponto você estaria disposto a testar sua fé? Até que ponto nossas ações são eticamente justificadas? Investigando a disposição de Abraão em sacrificar seu filho Isaque em Temor e Tremor, Søren Kierkegaard revela o poder enigmático da fé, a qual transcende as normas éticas, obrigando os indivíduos a dar um salto além da razão e da intuição moral.

Revisitando Gênesis 22, uma passagem bíblica denominada em hebraico Akedah, Deus pede a Abraão que sacrifique seu filho Isaque, nascido na velhice com sua amada esposa Sara. Abraão tinha uma escolha: cumprir a tarefa ou esquecê-la. Ele se resignou a executá-la. No final, Deus detém Abraão no último momento: um carneiro cruza seu caminho e o sacrifica, interpretando essa aparição como um sinal divino, em vez de sacrificar seu filho.

Kierkegaard: Temor e tremor

O Sacrifício de Isaac. Caravaggio

No livro Temor e Tremor (em dinamarquês Frygt og Bæven, uma alusão Filipenses 2:12), Kierkegaard nota alguns problemas nessa passagem perturbadora. As grandes religiões monoteístas celebram Abraão como o pai da fé. O patriarca representa o homem de fé e obediência. Abandou sua vida urbana para ser um errante, já idoso esperou o nascimento de seu filho Isaque, viveu pela promessa de constituir uma grande nação entre seus descendentes. Enquanto Abraão foi considerado um grande homem, sua grandeza (obediência) também é um pecado (assassinato). Abraão não é um herói trágico, pois não pode reivindicar uma justificativa ética superior para seu ato. Decorrente disso surgem três problemas.

 • Problema 1: Como um assassino pode ser reverenciado como o pai da fé? Como a ética pesou na decisão de Abraão?
 • Problema 2: Existe um dever absoluto para com Deus?
 • Problema 3: Seria eticamente defensável para Abraão ocultar seu feito de Sara, de Eliezer e de Isaque?

Kierkegaard diz que todo mundo tem uma escolha na vida. A liberdade consiste em usar essa escolha. Cada um de nós tem o direito de falar ou não falar e o direito de agir ou não agir. A partir disso, a solução de Kierkegaard para as questões da ética e do propósito fundamenta-se no conceito de suspensão teleológica do ético. O filósofo dinamarquês argumenta que a vontade subjetiva é capaz de reconhecer o que é autoritário e o que é bom, separado dos padrões éticos objetivos. As ações de Abraão exemplificam essa suspensão das visões éticas. Kierkegaard apresenta uma teoria diferente docerto edo  errado, enfatizando o estado perpétuo de estar errado em relação a Deus. Aqui, portanto, ocorre um salto de fé.

Antes de explicar o que é a fé para o filósofo, Kierkegaard distingue três esferas ou estágios de existência: o estético, o ético e o religioso.

O estágio estético caracteriza-se pelo foco no prazer pessoal, na gratificação imediata e na busca de desejos individuais. Nesse estágio, os indivíduos são movidos por suas experiências sensoriais e buscam sua própria felicidade pessoal sem considerar considerações éticas ou morais mais amplas. É uma fase descompromissada e marcada por uma busca constante por novidades.Uma pessoa age intuitivamente e imediatamente. Esta é uma resposta individual à existência.

O estágio ético é caracterizado por umresposta racional à vida. A pessoa se compromete com as verdades universais por meio da filosofia, da ciência e até da teologia. Envolve reconhecer e cumprir os próprios deveres e responsabilidades para com os outros. Nesse estágio, os indivíduos transcendem seus desejos imediatos e agem de acordo com as obrigações éticas e as expectativas da sociedade.

O estágio religioso vai além do ético e envolve um salto de fé. No entanto, é um pouco complicado entender o que é essa fé. De alguma forma na fé a pessoa deixa de lado o nível universal do ético. O indivíduo é confrontado com uma resposta, mas não no nível puramente intuitivo do estético, mas em um salto infinito de fé, até mesmo um salto no absurdo e ininteligível, mas na vontade de Deus. Então,Implica um relacionamento pessoal com o divino e um reconhecimento da autoridade absoluta de Deus. É marcado por um senso de subjetividade individual e pela aceitação de paradoxos que não podem ser compreendidos apenas pela razão. O estágio religioso envolve uma vontade de abrir mão da autonomia pessoal e abraçar o transcendente, mesmo que isso desafie as normas éticas convencionais.

Em Temor e Tremor, Kierkegaard usa essas noções para entender a narrativa de Abraão e sua disposição de sacrificar Isaque. Argumenta que as ações de Abraão representam um movimento do estágio ético para o estágio religioso, quando ele demonstra fé absoluta no mandamento de Deus, mesmo que contrarie o dever ético de proteger o filho. Kierkegaard apresenta isso como um exemplo da natureza paradoxal da fé e da subjetividade última da experiência religiosa.

A fé não é uma emoção estética, mas algo muito mais elevado, precisamente porque tem por pressuposto a resignação. Portanto, a fé não é um instinto imediato do coração, mas é o paradoxo da vida e da existência.

Um contraste com a Akedah aprofunda o dilema de Abraão. No épico da guerra de Troia, Agamenon é um herói trágico. Como Abraão, Agamenon teve que sacrificar sua filha, Ifigênia. No entanto, o grego não faz isso como um sinal de fé. Antes, o sacrifício tem funções intrumentais de apaziguar a deusa e ganhar respeito de seus pares pela coragem. Enquanto o herói trágico é universalmente compreendido e louvado, mas um cavaleiro da fé como Abrão é quase sempre incompreendido e suas ações parecem questionáveis.

Abraão realiza uma suspensão teleológica do ético quando decide matar Isaque. Abraão sabe que matar Isaque é antiético. No entanto, Abraão decide suspender o ético — em outras palavras, colocar as preocupações éticas em segundo plano — porque ele tem fé na retidão do fim (ou telos) que Deus trará. A fé de Abraão de que Deus não permitirá um telos antiético permite que ele tome o que aparenta ser uma decisão antiética. Abraão coloca as preocupações religiosas acima das preocupações éticas, provando assim sua fé em Deus.

Entrelaçado neste livro estão suas noções de salto de fé e o paradoxo como método. Criticando o hegelianismo, Kierkegaard propõe muitos paradoxos, muitos deles ilustrados a partir de anedotas e trechos de textos clássicos e novas parábolas. O texto fragmentário, errático, com um autor fictício – Johannes de Silentio – não faz da obra uma leitura fácil. Porém, a provocação do livro é fácil de absorver (ou se chocar). Ao invés de buscar uma síntese à maneira hegeliana, Kierkegaard convida a uma rendição total — um salto de fé.

Em suma, o indivíduo existe plenamente na fé – transcendendo o estético e o ético –, mesmo que em paradoxo com situações conflitantes na realidade

A escrita e publicação de Temor e Tremor por Søren Kierkegaard em 1843 ocorreu durante um período significativo em sua vida.

O caçula de uma família de sete irmãos, tinha levado uma vida no estágio estético até que o peso da vida veio.  A morte atingiu a família, levando em pouco tempo a mãe e os cinco irmãos. Em 1834 seu próspero pai confessou que vivia atormentado porque, quando jovem, oprimido pela pobreza e pela fome, ergueu o punho para o céu e amaldiçoou a Deus. Tal confissão abalou Søren. Em 1838, o pai de Kierkegaard, Michael Pedersen Kierkegaard, faleceu. O filósofo herdou uma quantia significativa de dinheiro que permitiu uma vida confortável, mas perturbada em relação à memória paterna. Problemas familiares continuaram quando Kierkegaard rompeu o noivado com Regine Olsen, uma jovem a quem amava. Kierkegaard rompeu o noivado de forma obscura em 1841. Entre 1843 e 1846, engajou-se em um período intenso de escrita e publicação. Durante esse tempo, ele produziu várias obras filosóficas importantes, incluindo Repetição, Fragmentos Filosóficos e O Conceito de Ansiedade. Essas obras exploraram temas existenciais, fé religiosa e a natureza da experiência subjetiva, com Temor e Tremor sendo uma peça central. Tal livro iria influenciar toda a vertente existencialista em filosofia. Por fim, esse período o colocou definitivamente em conflito com Igreja Luterana Dinamarquesa, acusando-a de complacência, criticando as interpretações excessivamente simplistas e acríticas do cristianismo.

Na leitura de Temor e Tremor, as ações de Abraão não podem ser justificadas do ponto de vista ético porque o ato de sacrificar o próprio filho vai contra nossas intuições morais e normas éticas. No entanto, o comportamento de Abraão pode ser compreendido no âmbito do religioso ou no domínio da fé. Kierkegaard argumenta que a obediência de Abraão ao mandamento de Deus é uma expressão de sua fé absoluta e confiança na vontade de Deus, mesmo que desafie as normas éticas convencionais. Nessa perspectiva, o ato de Abraão torna-se uma expressão paradoxal de devoção religiosa que transcende o domínio ético.

RESUMO ESTRUTURADO

Prefácio

No comércio das ideias tudo está em liquidação. Mas qual o custo de viver? E a baseado em quê? Todo filósofo, estudante e pensador não apenas duvida, mas procura ir além. A fé, antes uma tarefa para toda a vida, é agora um ponto de partida para todos. O escritor, aceita que escreve como um luxo, ciente de que poucos lerão suas obras. Ele prevê ser ignorado e teme o destino de ser dissecado por leitores críticos. No entanto, ele expressa deferência ao sistema e deseja prosperidade a seus leitores.

Prelúdio

Exordium

Quando criança, um homem ouviu a história da fé de Abraão e desejou testemunhar o evento por si mesmo. Com a idade, seu desejo cresceu, mas sua compreensão diminuiu. Ele ansiava por acompanhar Abraão em sua jornada, não pelos cenários exóticos, mas para experimentar a profundidade da fé. Despreocupado com conhecimento ou reconhecimento, ele acalentava somente a fé.

 Aquele homem não era um pensador, não sentia necessidade de ir além da fé; ele considerava a coisa mais gloriosa ser lembrado como o pai dela, uma sorte invejável possuí-la, mesmo que ninguém mais a conhecesse.
 
 Aquele homem não era um exegeta erudito, não sabia hebraico, se soubesse hebraico, talvez tivesse entendido facilmente a história e Abraão. Vemos aqui uma crítica velada à confiança dos métodos históricos, então florescente, para examinar textos bíblicos, os quais a preocupação em reconstruir o passado ignorava a relevância perene desses textos.

I, II, III, IV

Nesta seção, Kierkegaard explora a história de Abraão e sua fé nas promessas de Deus, concentrando-se em sua disposição de sacrificar seu filho Isaque.

Ele recria Gênesis 22 livremente, apelando aos sentidos, como em voga pelos padrões românticos.

Então eles voltaram para casa, e Sarah correu para encontrá-los, mas Isaque havia perdido a fé. Nenhuma palavra sobre isso jamais foi dita no mundo, e Isaque nunca falou com ninguém sobre o que tinha visto, e Abraão não suspeitou que alguém tivesse visto.

Um Panegérico sobre Abraão

Aqui apresenta a grandeza da fé de Abraão e a natureza paradoxal de suas ações. É um debate em torno da fé, da obediência e da natureza paradoxal da devoção religiosa. Explora a tensão entre os desejos humanos e os mandamentos divinos e a profunda confiança necessária para renunciar aos apegos pessoais em prol da fé.

Kierkegaard começa com uma descrição do significado da consciência eterna e do vínculo sagrado que une a humanidade. Em seguida, discute o papel do poeta e do herói, enfatizando a admiração e o amor do poeta pelo herói. Pondera que ninguém será esquecido que foi grande, cada um a seu modo e de acordo com seu amor e expectativas. Ele elogia Abraão como o maior de todos, destacando seu poder, sabedoria, esperança e amor, que ultrapassam a compreensão humana comum. Ele conclui elogiando a crença inabalável de Abraão e contrastando-a com as ações de Moisés, que não tinha fé.

Problemas:

Problema I

O primeiro problema abordado é a natureza paradoxal de Abraão como um aparente modelo de fidelidade e um pai moralmente repugnante. Isso representa um desafio significativo para o paradigma ético predominante.

 As ações de Abraão contradizem o imperativo ético de não matar seu filho. Entretanto, escolhe “suspender” essa obrigação moral em favor de seu próprio interesse pessoal, que o entendimento convencional consideraria um estado de tentação que requer arrependimento. Surpreendentemente, Abraão é aclamado como a personificação da fé, exemplificando um homem que vive sua bem-aventurança eterna. Além disso, ele é finalmente recompensado por ter seu filho devolvido a ele. Isso levanta a questão: como Abraão pode ser considerado um monstro moral e o epítome da fé e da bem-aventurança eterna?

 Kierkegaard propõe uma solução para este enigma desconcertante: fé. Sugere que, se o propósito de nossa vida não está vinculado a seguir normas éticas como nosso objetivo final (telos), então o que é? De acordo com Kierkegaard, a resposta está em abraçar uma fé radical, absurda e irracional.

Problema II

Existe um dever absoluto para com Deus? Aqui, ele argumenta que o ético é considerado universal e, portanto, de natureza divina.

 Se não há nenhum dever absoluto para com Deus, então a fé não tem lugar legítimo na existência. Nesse caso, a fé seria percebida como uma tentação, e as ações de Abraão o desviariam e resultariam em sua perda.

 Este paradoxo não pode ser resolvido através da mediação porque decorre do fato fundamental de que o indivíduo permanece distinto como indivíduo. Quando um indivíduo, que está ciente de um comando direto de Deus, tenta expressar seu dever absoluto em termos universais (ou seja, o ético), ele percebe que está sendo testado em termos de sua fé. Se resistem à indicação direta da vontade de Deus, acabam deixando de cumprir o que era considerado dever absoluto. Por outro lado, se eles não resistem à intimação direta da vontade de Deus, eles cometem um pecado, mesmo que suas ações estejam alinhadas com o que era considerado seu dever absoluto.

O argumento apresentado é que ou existe um dever absoluto para com Deus, levando ao paradoxo descrito em que o indivíduo supera o universal e se coloca em relação absoluta com o absoluto, ou a fé nunca existiu verdadeiramente porque sempre esteve presente. Em outras palavras, se o primeiro não for o caso, então Abraão está perdido. Uma explicação alternativa seria necessária para interpretar a passagem em Lucas 14, juntamente com passagens semelhantes.

Problema III

O silêncio de Abraão diante de Sara, Eleazar e Isaque representa um dilema ético. Se não houver ocultação justificada baseada na superioridade do indivíduo sobre o universal, sua conduta é indefensável. No entanto, se tal ocultação existe, cria um paradoxo não mediado onde o individual supera o universal. A filosofia hegeliana nega a ocultação válida, mas requer revelação, conflitante com o retrato de Abraão como o pai da fé. Ou existe um paradoxo ou Abraão está perdido. Seu silêncio contornou as autoridades éticas, enfatizando a vida familiar sobre o reino ético.

Epílogo

Será necessário nos enganarmos no reino do espírito? A geração atual requer treinamento em autoengano ou já se destaca nisso? O genuíno fator humano é a paixão, e nenhuma geração aprende o amor ou começa em um ponto diferente do anterior. A fé é a maior paixão, e cada geração começa de novo, limitada pela fidelidade de seus predecessores. O cansaço surge quando uma geração assume um lugar reservado ao espírito paciente que governa o mundo. Ir além é um impulso antigo, expresso por Heráclito e seu discípulo.


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