Ao ouvir falar em psicanálise, você pensa em divã, sonhos e associações livres? Para além dessa imagem recorrente, o campo psicanalítico se constituiu como um conjunto amplo de escolas, conceitos e práticas clínicas, muitas vezes divergentes entre si. Não há uma única psicanálise, mas um mosaico de tradições que compartilham problemas comuns e disputam modos de compreendê-los.
Desde Freud, a psicanálise desenvolveu-se por cisões, reformulações e diálogos com a filosofia, a psiquiatria, a antropologia e, mais recentemente, com as neurociências.

Principais correntes psicanalíticas
O que segue é um panorama introdutório das principais escolas, ideias e figuras da psicanálise e da psicologia analítica. Trata-se de um mapa de orientação conceitual, não de uma história exaustiva nem de uma hierarquização normativa. As correntes são apresentadas segundo seus focos teóricos, seus principais autores e as perguntas que orientam suas práticas.
Psicanálise freudiana clássica
Fundada por Sigmund Freud, constitui o ponto de partida de todo o campo. Parte da hipótese de um inconsciente dinâmico, estruturado por conflitos entre pulsões, defesas e instâncias psíquicas. A sexualidade, o recalque, a transferência, a interpretação dos sonhos e o complexo de Édipo organizam tanto a teoria quanto a técnica clínica.
Entre seus principais continuadores estão Anna Freud, que sistematizou os mecanismos de defesa; Ernest Jones, biógrafo e organizador do movimento psicanalítico; Karl Abraham, que contribuiu para a teoria do desenvolvimento libidinal; Sándor Ferenczi, que problematizou técnica, trauma e empatia; Otto Fenichel, responsável por uma síntese clínica e teórica; e James Strachey, cuja tradução e edição da obra de Freud fixou o vocabulário técnico em língua inglesa.
No contexto brasileiro, a introdução sistemática da psicanálise freudiana está associada à atuação de Durval Marcondes (1899–1981). Responsável pela tradução, difusão e institucionalização inicial da obra de Sigmund Freud no Brasil, Marcondes fundou, em 1927, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, marco decisivo para a formação de uma tradição psicanalítica organizada no país. Sua orientação manteve-se próxima da psicanálise freudiana clássica, com abertura posterior a desenvolvimentos da psicologia do ego, especialmente no que se refere à formação institucional e à técnica.
Questão típica: de que modo sintomas, sonhos e atos falhos expressam conflitos inconscientes recalcados?
Psicologia do ego
Desenvolvida principalmente nos Estados Unidos, desloca o foco exclusivo do conflito pulsional para as funções adaptativas do ego. Heinz Hartmann introduziu a ideia de áreas livres de conflito, enfatizando a adaptação à realidade. Ernst Kris e Rudolf Loewenstein aprofundaram a análise das defesas e da criatividade.
David Rapaport sistematizou o modelo metapsicológico, enquanto Erik Erikson articulou o desenvolvimento psíquico às tarefas sociais e culturais ao longo do ciclo vital, formulando estágios psicossociais.
Questão central: como o ego organiza defesas, adaptação e identidade ao longo do desenvolvimento?
Teorias das relações de objeto
Esse conjunto de abordagens investiga como as primeiras relações moldam a vida psíquica. Na escola britânica, Melanie Klein enfatizou as fantasias inconscientes precoces e as posições esquizoparanóide e depressiva.
William Ronald Dodds Fairbairn deslocou a libido do prazer para o vínculo. Michael Balint estudou falhas ambientais precoces. Harry Guntrip integrou essas ideias à clínica dos estados esquizoides. Donald Woods Winnicott, ligado ao chamado Grupo Independente, formulou conceitos como ambiente suficientemente bom, objeto transicional e falso self. John Bowlby, em diálogo com essas tradições, desenvolveu a teoria do apego.
Nos Estados Unidos, Margaret Mahler investigou o processo de separação-individuação; Otto Kernberg integrou relações de objeto, pulsões e psicopatologia grave; e Heinz Kohut estabeleceu pontos de contato com a psicologia do self.
Entre as figuras centrais da psicanálise brasileira ligadas às teorias das relações de objeto, destaca-se Virginia Leone Bicudo (1910–2003). Formada na tradição britânica, com forte influência kleiniana, Bicudo teve papel decisivo na consolidação da psicanálise no Brasil. Foi a primeira psicanalista didata não médica do país e desenvolveu pesquisas pioneiras sobre relações raciais, articulando clínica, sociologia e análise institucional. Sua obra ocupa posição singular ao integrar a tradição freudo-kleiniana a questões estruturais da sociedade brasileira.
Pergunta recorrente: como os vínculos iniciais estruturam o mundo interno e as relações futuras?
Psicologia do self
Fundada por Heinz Kohut, compreende a psicopatologia como falha no desenvolvimento da coesão do self, e não prioritariamente como conflito pulsional. Empatia, espelhamento e idealização são conceitos centrais. Ernest Wolf, Arnold Goldberg e Marian Tolpin deram continuidade teórica e clínica ao modelo.
Questão típica: como rupturas empáticas afetam a organização do self e a autoestima?
Psicanálise interpessoal
Harry Stack Sullivan redefiniu a psicanálise a partir dos padrões relacionais. A personalidade é concebida como produto das relações interpessoais, e não como estrutura intrapsíquica isolada. Clara Thompson e Frieda Fromm-Reichmann ampliaram essa abordagem. Erich Fromm e Karen Horney dialogam com esse campo ao enfatizar cultura, sociedade e caráter.
Na região sul do Brasil, a chamada Escola Psicanalítica de Porto Alegre desenvolveu uma leitura freudiana sensível às mediações culturais e literárias. Cyro Martins (1908–1995), fundador da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, articulou psicanálise, literatura e identidade regional, explorando a formação subjetiva no contexto histórico e social do Rio Grande do Sul. Sua produção evidencia uma vertente freudiana aberta ao diálogo com a cultura, sem abandono do referencial clínico.
Pergunta orientadora: como padrões recorrentes de relação produzem sofrimento psíquico?
Psicanálise lacaniana
Jacques Lacan propôs um retorno a Freud mediado pela linguística estrutural e pela filosofia. O inconsciente é estruturado como linguagem, e o sujeito é constituído pela falta. Os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário organizam sua teoria.
Jacques-Alain Miller sistematizou e difundiu o ensino lacaniano. Bruce Fink contribuiu para a clínica em língua inglesa. Colette Soler desenvolveu aspectos da teoria do sujeito. Slavoj Žižek aplicou conceitos lacanianos à filosofia e à crítica cultural.
A recepção da psicanálise lacaniana no Brasil adquiriu forte densidade teórica e impacto público. Joel Birman desenvolveu uma leitura de Jacques Lacan em diálogo constante com a filosofia e as ciências sociais, abordando temas como sofrimento contemporâneo, subjetividade e laço social. Maria Rita Kehl (1951–) articulou psicanálise, crítica cultural e ensaísmo, com análises voltadas à experiência brasileira contemporânea. Christian Dunker contribuiu para a sistematização da clínica lacaniana e para sua difusão pública, enquanto Vladimir Safatle integrou psicanálise lacaniana, filosofia política e teoria crítica, ampliando o campo de interlocução conceitual.
Questão típica: como o sujeito se constitui no campo da linguagem e do desejo?
Psicologia analítica junguiana
Fundada por Carl Gustav Jung, introduz a noção de inconsciente coletivo e arquétipos. Interessa-se por símbolos, mitos, sonhos e pelo processo de individuação. Marie-Louise von Franz aprofundou a análise simbólica. Erich Neumann estudou o desenvolvimento da consciência.
James Hillman formulou a psicologia arquetípica. Michael Fordham integrou a abordagem ao trabalho clínico com crianças. Edward Edinger e Jolande Jacobi sistematizaram conceitos fundamentais.
Pergunta recorrente: como símbolos e arquétipos organizam a experiência psíquica?
Psicanálise relacional
Emergente a partir dos anos 1980, entende a mente como construída na relação. Stephen Mitchell e Lewis Aron articularam esse modelo. Jessica Benjamin explorou reconhecimento e intersubjetividade. Philip Bromberg e Thomas Ogden investigaram estados múltiplos do self e o campo analítico. Adrienne Harris contribuiu para a articulação com gênero e cultura.
No campo educacional, Rinaldo Voltolini tornou-se referência na articulação entre psicanálise e educação no Brasil. Seu trabalho examina os impasses da transmissão, da autoridade e do laço social nas instituições escolares, mobilizando conceitos psicanalíticos sem reduzir a educação a uma aplicação clínica. Essa vertente reforça o caráter transversal da psicanálise brasileira, especialmente no diálogo com políticas públicas e práticas institucionais.
Questão central: como a relação analítica co-constrói experiência e significado?
Teoria moderna do conflito
Associada a Charles Brenner e Jacob Arlow, mantém o conflito psíquico como eixo central, integrando desenvolvimentos posteriores sem adesão a uma escola específica.
Pergunta típica: quais conflitos organizam sintomas e defesas?
Escola intersubjetiva (Stolorow–Atwood)
Robert Stolorow e George Atwood concebem a experiência emocional como emergente em campos intersubjetivos. Donna Orange e Bernard Brandchaft enfatizaram contexto, trauma e ética clínica.
Questão orientadora: como contextos relacionais moldam a experiência emocional?
Psicanálise bioniana
Wilfred Ruprecht Bion investigou o pensamento, a continência e os estados mentais primitivos. Conceitos como função alfa e ataques ao vínculo tornaram-se centrais. Donald Meltzer e Betty Joseph aprofundaram a aplicação clínica. Ignacio Matte-Blanco articulou essas ideias com a lógica.
A difusão da obra de Wilfred Bion no Brasil deve-se, em grande parte, à atuação de Luiz Carlos Uchoa Junqueira Filho (1938–). Vinculado tanto à tradição bioniana quanto à psicanálise francesa, Uchoa Junqueira contribuiu para a leitura clínica dos processos de pensamento, da simbolização e do funcionamento grupal. É conhecido pela formulação do conceito de “analisador”, empregado na compreensão das dinâmicas institucionais e clínicas, ampliando o alcance da psicanálise para além do setting clássico.
A vertente klein-bioniana tornou-se uma das mais influentes no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Frank Philips (1926–2016) consolidou a tradição kleiniana clássica, com rigor conceitual e ênfase na clínica. Elisa Maria de Ulhôa Cintra, por sua vez, destacou-se na aplicação das contribuições de Melanie Klein e Wilfred Bion à psicanálise de crianças, com especial atenção ao autismo e aos distúrbios graves do desenvolvimento. Essa linhagem contribuiu para uma clínica centrada na observação da vida emocional primitiva e dos processos de simbolização.
Pergunta típica: como o pensamento se forma a partir da experiência emocional bruta?
Psicanálise francesa (além de Jacques Lacan)
Jean Laplanche reformulou a teoria da sedução. André Green investigou o negativo e os estados-limite. Didier Anzieu desenvolveu o conceito de Eu-pele. Joyce McDougall estudou sexualidade, criatividade e psicossomática.
Questão recorrente: como o não representado opera na clínica?
Psicanálise existencial
Inspirada na fenomenologia, com Ludwig Binswanger e Medard Boss, integra existência, angústia e liberdade. Ronald David Laing radicalizou a crítica à psiquiatria. Rollo May e Irvin Yalom aproximaram psicanálise e psicoterapia existencial.
Questão central: como o sofrimento se articula à condição humana?
Psicanálise feminista
Juliet Mitchell e Nancy Chodorow revisaram Freud à luz do gênero. Jessica Benjamin integrou intersubjetividade e reconhecimento. Luce Irigaray e Julia Kristeva articularam psicanálise, linguagem e diferença sexual. Recenntemente, estudos psicanalíticos sobre feminino e gênero articulam clínica, teoria e crítica social. Tornou-se um campo mais amplo de revisão das categorias clássicas da psicanálise à luz das transformações contemporâneas das identidades e dos laços sociais.
Questão típica: como gênero estrutura subjetividade e teoria?
Neuropsicanálise
Busca integrar psicanálise e neurociência. Mark Solms investigou correlações neurais do inconsciente. Oliver Turnbull contribuiu para estudos clínicos. Jaak Panksepp desenvolveu a neurociência afetiva. Allan Schore articulou desenvolvimento, afeto e cérebro. Seu campo de atuação permanece controverso em círculos que rejeitam os elementos biológicos do inconsciente.
Pergunta orientadora: como processos neurais sustentam a experiência psíquica?
Psicoterapias psicodinâmicas breves
Autores como Franz Alexander, David Malan, Peter Sifneos e Habib Davanloo desenvolveram modelos focados no tempo, mantendo pressupostos psicanalíticos.
Questão típica: como intervir de forma focal e limitada no tempo?
Psicanálise culturalista e psicologia social
Karen Horney, Erich Fromm, Wilhelm Reich e Harry Stack Sullivan enfatizaram cultura, sociedade e poder. A articulação entre psicanálise, história e cultura no Brasil foi inaugurada de modo sistemático por Jurandir Freire Costa (1946–). Influenciado por Michel Foucault, seu trabalho analisou a formação da subjetividade brasileira a partir de dispositivos médicos, familiares e morais, como em Ordem Médica e Norma Familiar. Essa vertente desloca a psicanálise do espaço estritamente clínico para uma análise histórica das formas de subjetivação.
Pergunta recorrente: como a cultura molda o sofrimento psíquico?
Psicanálise pós-moderna e deconstrutiva
Em diálogo com Jacques Derrida e Jean-Luc Nancy, questiona fundamentos, categorias fixas e autoridade teórica.
Questão típica: quais pressupostos sustentam a teoria psicanalítica?
Psicanálise comparada e integrativa
Fred Pine e Paul Wachtel buscaram integrar escolas, evitando exclusivismos teóricos.
Questão central: como articular modelos distintos de forma coerente?
Psicanálise baseada no apego
Originalmente ligado aos kleinianos, Bowlby acabou rompendo de forma bastante abrupta com a Sociedade Psicanalítica Britânica (especificamente com os kleinianos) porque sentia que eles desvalorizavam o trauma ambiental da vida real em favor da fantasia interna. A partir de John Bowlby, Mary Main e Peter Fonagy desenvolveram modelos como a terapia baseada em mentalização. Jeremy Holmes difundiu essas ideias clinicamente.
Questão típica: como padrões de apego afetam a regulação emocional?
Psicanálise focada no trauma
Sándor Ferenczi antecipou o tema. Judith Herman e Bessel van der Kolk integraram trauma, memória e corpo. Heinz Kohut dialoga com esse campo.
Pergunta recorrente: como o trauma interrompe a simbolização?
Teoria de campo
Madeleine Baranger e Willy Baranger conceberam o processo analítico como campo compartilhado. Antonino Ferro desenvolveu essa abordagem clinicamente.
Questão central: como o campo analítico produz sentido?
Grupo de Estudos do Processo de Mudança de Boston
Daniel Stern, Louis Sander e Edward Tronick investigaram microprocessos de mudança e interação precoce.
Pergunta típica: como ocorrem mudanças implícitas na relação terapêutica?
Figuras dissidentes e correntes adjacentes
Várias vertentes se emanciparam da psicanálise. Alfred Adler desenvolveu a psicologia individual. Wilhelm Reich articulou caráter, corpo e política. Carl Rogers formulou a psicologia humanista. Friedrich Salomon Perls fundou a Gestalt-terapia. Alguns autores atuaram como mediadores entre a psicanálise e o debate público. Contardo Calligaris (1948–2021), psicanalista italiano radicado no Brasil, combinou formação lacaniana com intervenção cultural e jornalística. Jô Gondar desenvolveu pesquisas sobre memória, trauma e violência social. Nelson da Silva Junior trabalhou na interface entre psicanálise e saúde pública, contribuindo para o diálogo com políticas de saúde mental.
Desenvolvimentos regionais
Na Argentina, José Bleger e Enrique Pichon-Rivière integraram psicanálise e psicologia social. Na Itália, Franco Fornari, conhecido por seus estudos sobre agressão e guerra, e Cesare Musatti tiveram papel central.
A psicanálise no Brasil caracteriza-se por ecletismo teórico, com circulação entre vertentes freudianas, kleinianas, bionianas e lacanianas; por engajamento social, especialmente no diálogo com educação, saúde pública e questões culturais; por uma produção ensaística expressiva, na qual muitos psicanalistas atuam também como escritores; e por uma forte institucionalização, com sociedades filiadas tanto à International Psychoanalytical Association quanto à Associação Mundial de Psicanálise. Esses traços conferem ao campo brasileiro uma configuração singular no panorama internacional.
Movimentos integrativos contemporâneos
Incluem a terapia baseada em mentalização, desenvolvida por Peter Fonagy e Anthony Bateman; a psicoterapia dinâmica experiencial acelerada de Diana Fosha; e a teoria do controle e domínio, formulada por Joseph Weiss e Harold Sampson.
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Esse panorama não pretende esgotar o campo. Tal como na crítica literária, as escolas psicanalíticas não são mutuamente exclusivas, e a prática clínica frequentemente combina conceitos oriundos de tradições distintas. O mapa serve menos para escolher uma ortodoxia do que para compreender os problemas, as perguntas e as linguagens que estruturam a psicanálise em suas múltiplas formas.

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