A obra de Paulo Freire, A Pedagogia do Oprimido, foi publicada inicialmente em inglês (Herder y Herder, 1970) e espanhol (Editora Nuestra Tierra, 1970), e posteriormente em português (Editora Paz e Terra, 1974). Tornou-se um texto frequentemente referenciado nas ciências sociais. Alguns comentadores sugerem que, apesar de sua extensão relativamente curta, a obra é por vezes mais citada do que integralmente lida ou aplicada em sua complexidade. Este resumo busca dialogar com a obra, apresentando seus pontos centrais e uma análise de sua recepção.
Resumo de A Pedagogia do Oprimido
O prefácio e as “primeiras palavras” introduzem o trabalho de Paulo Freire e o propósito de A Pedagogia do Oprimido. Com base em sua experiência como professor no Brasil e durante o exílio político, Freire observou que os estudantes poderiam manifestar um receio em relação à liberdade ou à participação em transformações sociais. Freire propõe investigar as possíveis razões desse receio e os meios para superá-lo no processo educacional.
O primeiro capítulo – a justificativa da “pedagogia do oprimido” – aborda a importância de se considerar a humanidade dos indivíduos na educação. Descreve como questão central a afirmação da identidade como ser humano. Do ponto de vista existencial, argumenta-se que todos aspiram a viver humanamente, mas a opressão poderia interromper essa busca através da desumanização: um processo no qual a pessoa seria objetificada devido à injustiça, exploração e opressão.
Os oprimidos, segundo Freire, buscam recuperar sua humanidade de diversas formas. Ele postula que, quando os oprimidos lutam contra seus opressores sem uma consciência crítica de sua própria humanidade, arriscam-se a se tornarem opressores, reiniciando o ciclo.
Freire sugere que a libertação, precedida pela autoconsciência da humanização, ocorreria ao se compreenderem os objetivos dos opressores. Na visão de Freire, os opressores teriam uma perspectiva materialista, vendo seres humanos como objetos e valorizando a propriedade acima da humanidade, o que os desumanizaria também. Alerta-se que, na busca pela humanização, os opressores podem tentar auxiliar os oprimidos sob uma aparente generosidade que pode mascarar outras intenções.
Como caminho, Freire propõe o diálogo para que, em comunhão, as pessoas alcancem a humanização. Uma iniciativa genuína de libertação do oprimido, para Freire, requereria uma identificação com a situação do oprimido. Desta forma, os oprimidos, juntos, poderiam contribuir para uma humanidade mais plena, sem objetificação.
No segundo capítulo – a concepção “bancária” de educação –, Freire discute modelos educacionais. O modelo “bancário” de educação é descrito como aquele em que um indivíduo (o professor) transmite fatos e ideias, enquanto outros (os alunos) apenas ouvem e memorizam. Freire critica este modelo como passivo, desconectado da realidade e reprodutor de mecanismos de opressão, onde os alunos seriam implicitamente considerados inferiores e desestimulados a questionar o mundo ou seus professores.
Como alternativa, propõe o modelo de problematização, que incentiva a discussão entre professor e aluno. Neste modelo, a distinção hierárquica entre eles se atenuaria, à medida que todos aprendem colaborativamente. Assim, os alunos seriam encorajados a levantar questões e a se sentirem intelectualmente livres para participar da transformação do mundo.
O terceiro capítulo – a dialogicidade – explora a importância das palavras para a reflexão e a ação. O diálogo é definido como um entendimento entre pessoas diferentes. A ação dialógica é caracterizada por Freire como um ato de amor, humildade e fé, onde o interlocutor é reconhecido como independente para conceituar suas experiências.
Pelo diálogo, Freire busca fomentar uma investigação temática. A capacidade de descobrir diferentes problemas e ideias situadas em contextos históricos distintos é o que, para Freire, diferencia os seres humanos dos animais. Os animais estariam presos ao presente, enquanto os humanos compreenderiam sua inserção em processos históricos e poderiam usar essa compreensão para moldar seu mundo. No entanto, Freire argumenta que os oprimidos, muitas vezes, não seriam capazes de perceber seus próprios problemas, o que permitiria que os opressores se aproveitassem dessa situação.
O capítulo final – a teoria da ação antidialógica – contrapõe os métodos que seriam usados pelos opressores para suprimir a humanidade com as ações que os oprimidos poderiam empreender para recuperar a dignidade humana. O autor lista os meios dos opressores como ações antidialógicas: a conquista, a manipulação, a divisão para conquistar e a invasão cultural. Em contrapartida, os oprimidos teriam como meios quatro ações dialógicas: a unidade, a compaixão (entendida aqui como “sofrer com”, em um sentido de solidariedade e ação conjunta), a organização e a síntese cultural.
Recepção
O livro A Pedagogia do Oprimido teve recepções diversas. Alguns analistas entendem a proposta de Paulo Freire mais como um manifesto político-pedagógico, derivado da prática, do que como uma teoria de aprendizado estritamente fundamentada nas ciências da educação e cognitivas contemporâneas. Essa interpretação pode gerar diferentes expectativas em relação à obra, levando tanto a idealizações quanto a críticas que podem não considerar seu propósito original.
Tanto A Pedagogia do Oprimido quanto outros escritos de Paulo Freire são considerados por alguns estudiosos como obras de síntese. O ideal de uma educação para a vida e humanizadora pode ser visto em continuidade com tradições como a educação socrática, as artes liberais, as humanidades renascentistas e a educação progressista, modelos pedagógicos que historicamente questionaram a memorização descontextualizada e a redução instrumental do conhecimento.
A articulação entre os aspectos normativos e a descrição social na proposta de Freire é um ponto destacado por alguns pesquisadores. Observa-se que movimentos de educação popular, por meio de sua própria agência, já promoviam processos de humanização e conscientização antes ou em paralelo à obra de Freire. A teóloga pentecostal Cheryl Bridges Johns (1993), por exemplo, notou que a didática bíblica cristã entre evangélicos latino-americanos aplicava princípios semelhantes aos de Freire, como a valorização dos conceitos da própria comunidade e a articulação de sua linguagem para fomentar a dignidade humana e a libertação da opressão. Contudo, a própria Johns aponta que o potencial libertador da educação cristã pode encontrar limitações quando cooptado por lideranças que se acomodam em posições de poder.
No que se refere a práticas e métodos de alfabetização de jovens e adultos (como o atual EJA), o Método Paulo Freire não se apresentava como uma solução completa ou universal. Sua ênfase residia na utilização de materiais e conteúdos do universo do estudante, em contraste com materiais padronizados como as cartilhas. Para desenvolver esse material, Freire propôs a pesquisa-ação, envolvendo a colaboração entre pesquisadores e outros sujeitos para levantar vocabulários e temas a serem aplicados no processo educacional. Além da alfabetização, a pesquisa-ação também pode ser útil para a solução de problemas e para traduzir ideias em ação, visando à mudança da realidade, configurando-se como uma abordagem focada na agência dos participantes.
Paulo Freire: o autor
Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) foi um educador com atuação destacada na educação popular. Trabalhou em Pernambuco e, após o exílio, seus métodos e obras tornaram-se conhecidos e foram adotados em diversos contextos internacionais. Sua obra contribuiu para o reconhecimento da legitimidade do saber popular, buscando harmonizar o conhecimento formal e o informal, com o objetivo de entender a prática em termos teóricos para poder transformá-la.
Governos autoritários em determinados períodos históricos buscaram reprimir a obra de Paulo Freire, possivelmente por receio de que ela pudesse fomentar o senso crítico. Registra-se, com alguma ironia, que iniciativas como o MOBRAL no Brasil empregaram seletivamente elementos do modelo de Freire. Há também relatos sobre o uso de técnicas associadas a Freire no treinamento de militares da OTAN.
A politização de seu legado resultou em diferentes interpretações e imagens de Paulo Freire. Uma primeira perspectiva o vê como o educador popular focado na alfabetização em um país com altos índices de analfabetismo e como um humanista que ressaltava o papel libertador da educação. Seus ideais, pressupostos e meios foram objeto de debate acadêmico em sua época, como é comum. As críticas incluíam observações sobre seu estilo de escrita, considerado por alguns como verborrágico (uma característica que ele mesmo apontou em outros teóricos), e questionamentos sobre a fundamentação empírica de alguns de seus pressupostos. Como em outras iniciativas de alfabetização de adultos em massa, discute-se a questão da retenção do letramento a longo prazo. A dicotomia opressor-oprimido é, por vezes, considerada por analistas contemporâneos como um modelo que requer nuances diante da complexidade da interseccionalidade dos papéis sociais, embora se reconheça que a opressão persiste. Não obstante, o ideal do educador que busca a autonomia intelectual dos estudantes encontra ressonância em diversas instituições de ensino, tanto privadas quanto públicas, em diferentes países, que buscam incorporar aspectos do legado de Freire.
Sua obra é mencionada e estudada em países de língua inglesa, francesa, espanhola e na Escandinávia. Movimentos populares de variadas orientações políticas também encontraram inspiração em suas propostas. Em comum, os ideais de Paulo Freire parecem orientar a formação de indivíduos capazes de analisar criticamente e enfrentar riscos de conquista, manipulação, faccionalismo e imposição ideológica, enquanto desenvolvem sensibilidade ética e humana.
Uma segunda percepção de Paulo Freire é descrita por alguns como uma visão romantizada, que o retrata como um revolucionário da educação. Críticos dessa visão apontam que, por vezes, atribuem-se a Freire ideias e métodos que teriam origens em outros pensadores da educação, como Comênio, Rousseau, Pestalozzi, Dewey, Montessori, entre outros. Argumenta-se que alguns adeptos dessa perspectiva podem reformular conceitos preexistentes com nova terminologia. Como Freire não se dedicou a determinar conteúdos curriculares ou a padronizar técnicas pedagógicas de forma exaustiva, algumas inovações ou experimentos escolares podem ser genericamente rotulados como “método Paulo Freire”, resultando em atribuições de méritos ou deméritos que podem não ser precisas.
Em parte como consequência dessa segunda percepção, surge uma terceira imagem de Freire, na qual ele é responsabilizado por falhas em sistemas educacionais no Brasil. Essa responsabilização, segundo alguns analistas, desconsidera o histórico de analfabetismo endêmico do país, as características da educação tecnicista durante a ditadura, e os desafios de implementação da LDB de 1996, incluindo questões de financiamento e gestão. Críticos dessa terceira imagem argumentam que ela frequentemente se baseia em um desconhecimento da obra de Freire e de sua recepção crítica, e que, por vezes, se insere em narrativas que a associam a uma suposta infiltração ideológica “esquerdista”. Para alguns observadores, a existência de tais interpretações simplificadas ou instrumentalizadas politicamente sugere que o ideal de uma educação libertadora, nos moldes socráticos ou freirianos, ainda enfrenta obstáculos para sua plena realização.
A leitura de A Pedagogia do Oprimido pode ser entendida como um convite ao diálogo. Outras leituras são possíveis e podem enriquecer esse debate. O texto também pode ser visto como um lembrete da importância do diálogo para os processos de humanização.
SAIBA MAIS
Beckett (2017) é um sucinto constrate da obra do educador com outros pensadores pedagógicos. Chaves-Tannús (2003) é um exemplo de crítica pertinente na academia. Arelaro e Cabral (2019) faz um panorama de sua vida e obra.
Arelaro, Lisete R.G., Cabral, Maria Regina.M. “Paulo Freire: por uma teoria e práxis transformadora”. In: Boto, Carlota., ed. Clássicos do pensamento pedagógico: olhares entrecruzados. Uberlândia: EDUFU, 2019, pp. 267-292. Available from:
http://books.scielo.org/id/fjnhs/pdf/boto-9786558240273-13.pdf.
https://doi.org/10.14393/edufu-978-85-7078-472-8.
Beckett, Kelvin. “John Dewey’s conception of education: Finding common ground with Peters, R.S. and Paulo Freire”. Educ. Philos. Theory 2017, 50, 1–10.
Bridges Johns, Cheryl. Pentecostal Formation: A Pedagogy Among the Oppressed. Sheffield Academic Press, 1993.
Chaves-Tannús, Marcio. “A Alfabetização de adultos. In.: Ação Cultural para a liberdade e outros escritos – Paulo Freire”. EDUCAÇÃO E FILOSOFIA, 1(2), 123-125. Disponível em http://www.seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/2003

