Realismo do Senso Comum: a confiança na percepção e na razão cotidiana

Eis que que você entra em uma sala. Você vê uma cadeira, uma mesa, as paredes. Você desvia da cadeira para não tropeçar, talvez coloque um livro sobre a mesa. Você faz isso naturalmente, confiando que seus olhos estão lhe mostrando objetos reais e sólidos no espaço. Essa confiança básica, essa sensação de que o que percebemos diretamente é, em grande parte, o que de fato existe, é o ponto de partida do nosso dia a dia. É o nosso “mapa” básico para navegar no mundo. Agora, imagine alguém que para na porta e pergunta: “Mas como você pode ter certeza absoluta de que essa cadeira não é apenas uma ilusão complexa ou uma ideia na sua mente?”

A filosofia, em sua busca por fundamentos, muitas vezes levanta questões céticas como essa. O Realismo do Senso Comum é a corrente filosófica que responde: “Confie no mapa básico!” (É importante notar que o termo “Common Sense” de Reid tem um significado técnico, referindo-se a princípios fundamentais do entendimento, mais específico que o uso coloquial de “senso comum”).

Entre as tentativas filosóficas de entender como conhecemos o mundo, o Realismo do Senso Comum (também conhecido como Realismo Escocês do Senso Comum, sigla em inglês CSR) oferece uma perspectiva ancorada na experiência cotidiana. Originada durante o Iluminismo Escocês do século XVIII, esta escola filosófica enfatiza a confiabilidade fundamental do senso comum e a fidedignidade de nossas percepções sensoriais como guias para a realidade.

Princípios e Pressupostos Fundamentais

As reivindicações centrais do Realismo do Senso Comum incluem o realismo direto, o senso comum inato e o antiescepticismo

O realismo direto é a crença de que percebemos diretamente os objetos externos como eles existem no mundo. Crucialmente, isto significa uma rejeição do representacionalismo (a “via das ideias” de Locke, onde percebemos apenas representações mentais), mas não nega a possibilidade de erro perceptual (distinguindo-se, assim, do realismo ingênuo, que ignora ilusões ou falhas dos sentidos). A percepção é vista como uma relação direta, embora falível, com o objeto.

Já o senso comum inato sustenta a existência de certos princípios do entendimento que são fundamentais e universalmente compartilhados. Estes princípios são “inatos” no sentido epistêmico: são pressupostos necessários para qualquer raciocínio coerente ou experiência inteligível, não necessariamente instintos biologicamente determinados. Por exemplo, a crença na existência de um mundo externo ou na nossa própria identidade pessoal contínua são princípios que, segundo Reid, não podemos coerentemente duvidar; são o ponto de partida do conhecimento.

Em razão desses dois fundamentos, o CSR propõe um antiescepticismo. Adota uma postura de forte rejeição ao ceticismo filosófico radical. Argumenta que as dúvidas hiperbólicas (como as cartesianas) sobre a realidade externa ou a validade da memória são impraticáveis e, em última análise, auto-refutáveis. O CSR defende a validade da certeza prática – a convicção robusta necessária para a vida e a ciência – embora não reivindique a certeza absoluta e indubitável que os céticos exigem e consideram inatingível.

Esta abordagem repousa sobre alguns pressupostos fundamentais: uma confiança primordial (mas não cega) na percepção sensorial; a crença nesses princípios epistemicamente inatos do senso comum; e a pressuposição de uma realidade objetiva que existe independentemente da percepção humana.

Contexto Histórico

Historicamente, o Realismo do Senso Comum emergiu como uma resposta direta ao ceticismo de David Hume. A obra seminal de Reid, Investigação sobre a Mente Humana nos Princípios do Senso Comum (1764), foi uma crítica direta e sistemática às conclusões do Tratado da Natureza Humana de Hume (1739), argumentando que o ceticismo radical minava os próprios fundamentos do pensamento e da ação. Embora também se opusesse ao idealismo de George Berkeley e à dúvida metodológica de René Descartes, estes foram alvos secundários em comparação com Hume.

O CSR floresceu durante o Iluminismo Escocês, com outras figuras proeminentes como Adam Ferguson e Dugald Stewart. James Beattie, com seu Ensaio sobre a Natureza e Imutabilidade da Verdade (1770), popularizou muitas ideias do CSR, embora tenha sido criticado por uma abordagem mais retórica e menos rigorosa filosoficamente que a de Reid.

Alcance da influência

A influência do Realismo do Senso Comum estendeu-se para além da filosofia pura. Filósofos como Dugald Stewart e William Hamilton deram continuidade e adaptaram as ideias de Reid. Na educação, a filosofia inspirou práticas que defendiam uma abordagem mais integrada e menos abstrata do conhecimento. Na política dos Estados Unidos, sua influência é notável, mas deve ser nuançada. John Witherspoon, aluno de Reid e presidente de Princeton, ensinou figuras importantes como James Madison. No entanto, embora Thomas Jefferson admirasse Reid, suas principais influências filosóficas provinham de Locke e de pensadores do Iluminismo Francês. O impacto direto do CSR na estrutura política americana é, portanto, objeto de debate, sendo mais evidente no círculo de Witherspoon. O panfleto Common Sense de Thomas Paine, crucial para a Revolução Americana, ressoava com o apelo do CSR à razão acessível e às verdades autoevidentes, mas não era uma aplicação direta da filosofia de Reid.

Legado no protestantismo estadunidense

O Realismo do Senso Comum exerceu uma influência em certas vertentes do protestantismo estadunidense, especialmente o evangelicalismo. Witherspoon foi chave na sua disseminação. Para o evangelicalismo até meados do século XX, o CSR forneceu um arcabouço filosófico para defender a racionalidade da fé cristã contra o ceticismo e o liberalismo teológico, enfatizando a confiabilidade das evidências (incluindo testemunhos bíblicos) acessíveis ao entendimento comum.

A Escola de Princeton e a Teologia do Senso Comum foi baseada no CSR, baseado no Seminário Teológico de Princeton (Old Princeton). Charles Hodge, em sua Teologia Sistemática (1872), utilizou explicitamente um método indutivo inspirado no CSR, tratando a Bíblia como um repositório de “fatos” a serem coletados e sistematizados, embora sempre priorizando a autoridade bíblica sobre o empirismo puro. B.B. Warfield apelou à “reta razão” e argumentou pela validade do cristianismo para “mentes que funcionam normalmente”, mas sua doutrina da inerrância bíblica foi um desenvolvimento teológico específico que ia além da epistemologia geral de Reid.

A relação do CSR com o Fundamentalismo Cristão foi marcada por tensão. Por um lado, os fundamentalistas abraçaram o empirismo e o apelo à evidência do CSR para a apologética, como visto em The Fundamentals (1910-1915). Por outro lado, rejeitaram o racionalismo moderado e a abertura intelectual associada a algumas vertentes do CSR, considerando-os insuficientes para sua postura mais militante e literalista, e criticando uma percebida falta de precisão doutrinária.

Apesar das críticas e transformações, o CSR tornou-se, em muitos círculos evangélicos e fundamentalistas, um paradigma epistemológico vivido – aceito tacitamente. Exportado por missionários, continua a informar abordagens à fé e à modernidade em segmentos globais ligados a essas tradições americanas.

Questionamentos e críticas

O Realismo do Senso Comum enfrentou críticas significativas ao longo do tempo. Dentro da filosofia, a confiança do senso comum é questionável. Immanuel Kant argumentou que a percepção nunca é totalmente direta, mas sempre mediada pelas categorias a priori do entendimento (espaço, tempo, causalidade). G.W.F. Hegel criticou a noção de um “senso comum” universal, argumentando que ele é, em grande parte, histórica e culturalmente contingente. Filósofos pragmatistas como Charles Sanders Peirce e John Dewey desafiaram a ideia de verdades fixas do senso comum, propondo que a verdade é falível, experimental e socialmente construída.

Dentro do contexto evangelical e reformado, surgiram críticas importantes. George Marsden argumentou que a forte dependência do CSR da racionalidade e da evidência levou a uma fé “intelectualizada”, negligenciando a experiência espiritual e a ação do Espírito Santo. Teólogos pressuposicionalistas como Jared Oliphint veem a confiança no senso comum como epistemologicamente ingênua, defendendo a revelação divina como o único ponto de partida seguro. Kevin Vanhoozer critica epistemologias fundacionalistas (incluindo o CSR) a partir da filosofia da linguagem, argumentando que a interpretação de textos (especialmente a Escritura) é primária para a teologia. Alvin Plantinga, partindo de Reid, desenvolveu a Epistemologia Reformada nos anos 1980, argumentando que a crença em Deus pode ser “propriamente básica”, racional sem necessidade de prova empírica ou argumentativa, movendo-se para além do fundacionalismo clássico. O trabalho de James A. K. Smith sobre conhecimento não fundacionalista também oferece uma crítica implícita a abordagens excessivamente focadas na razão proposicional.

Status atual e relevância

Atualmente, o Realismo do Senso Comum não possui a mesma proeminência acadêmica dos séculos XVIII e XIX, tendo perdido espaço a partir de meados do século XX com a influência de abordagens como a filosofia da linguagem de Wittgenstein (especialmente Sobre a Certeza) e a epistemologia naturalizada de Quine. No entanto, continua a ser uma referência em discussões contemporâneas.

Na filosofia da percepção, ideias relacionadas ao realismo direto foram revitalizadas por abordagens como o disjuntivismo (por exemplo, John McDowell, a partir de 2008), que defende a percepção direta enquanto busca explicar melhor as ilusões. O “Realismo de Oxford” (associado a J. L. Austin e H.H. Price) também representa uma defesa modificada de princípios do CSR.

Na teologia analítica e na apologética, o legado do CSR persiste em debates sobre fé baseada em evidências (com figuras como William Lane Craig, por exemplo). Sua ênfase na confiabilidade básica da percepção e nas crenças fundamentais permanece um ponto de referência relevante.

Um contrapeso ao ceticismo

O Realismo do Senso Comum representa uma importante tentativa filosófica de validar as intuições e percepções fundamentais que guiam a vida humana. Oferecendo um contrapeso ao ceticismo radical, ele fornece um fundamento para a compreensão do mundo e para a ação prática, ancorado naquilo que parece mais básico e inescapável na experiência humana. Embora sujeito a críticas e revisões, seu foco na estrutura da cognição comum e na confiança epistêmica básica continua a ressoar nos debates sobre conhecimento, realidade e crença.

SAIBA MAIS

Beattie, James. An Essay on the Nature and Immutability of Truth. Edinburgh: A. Kincaid and J. Bell, 1770.

Burgess-Jackson, K. “Common Sense Realism.” The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edited by Edward N. Zalta. https://plato.stanford.edu/entries/common-sense-realism/.

Ferguson, Adam. An Essay on the History of Civil Society. Edinburgh: A. Kincaid and J. Bell, 1767.

Hamilton, William. Lectures on Metaphysics and Logic. Edinburgh: William Blackwood and Sons, 1860.

Hume, David. An Enquiry Concerning Human Understanding. Oxford: Oxford University Press, 2000.

Locke, John. An Essay Concerning Human Understanding. Oxford: Oxford University Press, 1975.

Marsden, George M. Fundamentalism and American Culture. New York: Oxford University Press, 1980.

Oliphint, Jared. Reasons for Faith: Philosophy in the Service of Theology. Wheaton, IL: Crossway, 2015.

Plantinga, Alvin. Warranted Christian Belief. Oxford: Oxford University Press, 2000.

Reid, Thomas. Essays on the Intellectual Powers of Man. Edinburgh: John Bell, 1785.

Smith, James K. A. Pensando em Línguas: contribuições pentecostais para a filosofia cristã. 2021.

Stewart, Dugald. Elements of the Philosophy of the Human Mind. Edinburgh: Constable and Company, 1814.

Vanhoozer, Kevin J. The Drama of Doctrine: A Canonical-Linguistic Approach to Christian Theology. Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2005.

Witherspoon, John. Lectures on Moral Philosophy and Religion. Edited by David J. Voelz. Carlisle, PA: Banner of Truth, 2007.

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