Realismo Crítico: a realidade é mais do que percebemos

A busca por compreender a intrincada relação entre o mundo que nos cerca e as formas como o conhecemos tem sido um motor fundamental da filosofia da ciência e da teoria social. Nesse cenário, o realismo crítico emerge como uma perspectiva filosófica sofisticada, navegando entre os extremos do positivismo e do pós-modernismo. Só um adendo, o termo não se relaciona ao conceito homônimo de Georg Lukács. Esse conceito postula a existência de uma realidade objetiva e estratificada, independente da nossa percepção, ao mesmo tempo em que reconhece a natureza falível e socialmente condicionada do nosso conhecimento sobre ela.

Desenvolvido inicialmente a partir dos trabalhos do filósofo britânico Roy Bhaskar, como A Realist Theory of Science (1975) e The Possibility of Naturalism, o realismo crítico encontrou um terreno fértil para investigar tanto o mundo natural quanto o social. A gênese desta abordagem reside na defesa da primazia da ontologia – o estudo do ser. Bhaskar argumentou, através de uma inversão do argumento transcendental kantiano, que para a ciência ser inteligível e praticável, devemos pressupor como o mundo deve ser. Essa questão central – “o que o mundo deve ser para que o conhecimento do mundo seja possível?” – estabelece a prioridade ontológica: o “mundo” (o real) precede e fundamenta qualquer sistema de compreensão ou prática humana sobre ele.

Para manter a inteligibilidade da compreensão científica, particularmente a falibilidade e a transformação do conhecimento humano, o realismo crítico postula a necessidade de separar analiticamente a epistemologia (conhecimento, sistemas, pensamentos, ideias, teorias, linguagem) da ontologia (ser, coisas, ôntico, existentes, realidade, objetos de investigação). Essa distinção crucial entre as dimensões intransitiva (os objetos e estruturas relativamente duradouros da realidade que tentamos conhecer) e a dimensão transitiva (nosso conhecimento mutável e socialmente situado sobre esses objetos) permeia toda a estrutura do realismo crítico. Essa distinção visa confrontar a crença generalizada, frequentemente implícita, de que falar sobre o “mundo real” é ingênuo ou sem sentido, ou que só podemos nos referir às formas como o entendemos ou organizamos (linguagem, modelos, etc.). Tal perspectiva tende a colapsar o ser “independente da mente” em nosso conhecimento ou experiência do ser, o que Bhaskar denomina falácia epistêmica, servindo de base para uma explicação antropomórfica do mundo.

Em contraposição, Bhaskar não apenas defende a necessidade de fazer ontologia, mas também de uma ontologia estruturada e diferenciada, necessariamente pressuposta pela prática científica, em particular pela experimentação. Ele postula uma realidade estratificada em três domínios interligados:

  • o real (estruturas profundas, mecanismos e seus poderes causais, que existem independentemente de serem acionados ou percebidos);
  • o atual (eventos que ocorrem quando esses mecanismos são ativados, quer os observemos ou não) e
  • o empírico (eventos que são efetivamente observados e experienciados).

As estruturas reais existem independentemente e estão frequentemente defasadas em relação aos padrões de eventos atuais observáveis. Além disso, o realismo crítico reconhece a emergência de novas propriedades em diferentes níveis da realidade estratificada, propriedades essas que não podem ser simplesmente reduzidas às de seus componentes constituintes, sendo isso crucial para entender a complexidade dos fenômenos sociais.

Essa ontologia estratificada exige uma revisão radical da causalidade, afastando-se da visão de David Hume. Hume argumentou que a causalidade era simplesmente conjunção constante: vemos A seguir-se a B repetidamente e inferimos uma conexão. O realismo crítico argumenta que tal regularidade só ocorre, se tanto, em sistemas fechados, como os criados artificialmente em laboratórios para isolar variáveis.

A maior parte da realidade, incluindo o mundo social, opera como sistemas abertos, onde múltiplos mecanismos interagem de formas complexas e contingentes, de modo que conjunções constantes raramente se manifestam (o evento B nem sempre segue A).

A ciência, portanto, não busca apenas regularidades em eventos, mas investiga os mecanismos generativos subjacentes – entendidos como as estruturas, poderes e passivos que moldam as tendências de um objeto ou sistema – que produzem os eventos, mesmo que de forma irregular. Esses mecanismos operam transfactualmente, ou seja, sua existência e poder causal persistem independentemente de produzirem resultados constantes ou de serem observados sob condições específicas. Eles operam tanto em sistemas abertos quanto fechados (embora sejam mais identificáveis nos fechados) e podem ser exercidos sem serem manifestos empiricamente.

Essa ênfase na existência de mecanismos causais mesmo quando não estão sendo exercidos ou manifestos contrasta fortemente com o atualismo, que tende a reduzir os mecanismos aos eventos atuais que eles produzem. A experimentação torna-se crucial não por replicar o mundo, mas por criar condições controladas (sistemas fechados) onde mecanismos específicos podem ser isolados e compreendidos em sua operação.

Ao aplicar esses princípios às ciências sociais em The Possibility of Naturalism, Bhaskar estabelece o “naturalismo crítico”, questionando as propriedades que as sociedades possuem que as tornam objetos possíveis de conhecimento. Ele busca resolver dualismos predominantes como estrutura e agência, coletivismo e individualismo, reificação e voluntarismo, causas e razões. No que diz respeito à estrutura e agência, seguindo Durkheim, o realismo crítico sustenta que a estrutura social precede a agência humana, fornecendo as causas materiais e o contexto sócio-linguístico-epistêmico para a ação. Contudo, alinhado a Weber, adverte contra a reificação: as estruturas operam através da mediação da agência humana e da atividade social. Bhaskar encapsula essa dinâmica no Modelo Transformacional da Atividade Social (TMSA): “A sociedade é tanto a condição sempre presente (causa material) quanto o resultado continuamente reproduzido da agência humana. E a práxis é tanto trabalho, isto é, produção consciente, quanto reprodução (normalmente inconsciente) das condições de produção, isto é, a sociedade.” As pessoas não criam a sociedade do nada; ela preexiste a elas como condição necessária para sua atividade. Em vez disso, a sociedade é um conjunto de estruturas, práticas e relações que os indivíduos reproduzem e transformam através de suas ações.

Margaret Archer, por sua vez, desenvolveu o conceito de morfogênese para aprofundar a compreensão da relação entre estrutura e agência ao longo do tempo. Criticando a teoria da estruturação de Anthony Giddens por “elisionismo” – a fusão conceptual de estrutura e agência que, segundo ela, levava a uma oscilação descontrolada entre determinismo e voluntarismo –, Archer defendeu o dualismo analítico. Argumentou que, embora interdependentes, estrutura e agência operam em escalas de tempo distintas e devem ser separadas analiticamente para compreender a mudança social. A estrutura preexistente (T1) condiciona a interação social; a agência humana age sobre essa estrutura (T2-T3); e dessa interação emerge uma estrutura elaborada ou transformada (T4). O dualismo analítico é crucial para decompor os fluxos contínuos da realidade em intervalos manejáveis para a análise, permitindo entender as propriedades sociais e sistêmicas, a estruturação ao longo do tempo e explicar formas específicas de elaboração estrutural. Archer refinou essa abordagem, elaborando os mecanismos de transformação social, destacando o papel vital da conversação interna na mediação da agência, e expandindo a análise para incluir a Cultura como um domínio distinto (modelo Estrutura, Cultura e Agência – SAC) e, mais recentemente, o papel da reflexividade no mundo moderno.

A questão dos fatos e valores também é abordada de maneira sofisticada. Em vez de uma separação estrita, como defendido pelo positivismo, o realismo crítico argumenta que os valores estão intrinsecamente ligados à nossa compreensão e avaliação dos fatos sociais. A crítica imanente, um método central, busca identificar as contradições e as possibilidades de transformação dentro das próprias práticas e estruturas sociais existentes, revelando como os valores moldam nossas interpretações e podem informar ações voltadas à emancipação (ligado à cautelosa ética naturalista).

É importante notar que o realismo crítico não é uma doutrina unificada, uma metodologia específica ou uma teoria empírica em si. Funciona como uma meta-teoria – um arcabouço filosófico que fornece os fundamentos para a compreensão da ciência e da sociedade. Como uma “família” intelectual, seus adeptos compartilham compromissos centrais, mas com variações e influências diversas. Seus compromissos unificadores geralmente incluem: realismo ontológico, relativismo epistêmico, racionalidade judicativa e, frequentemente, uma forma de naturalismo ético cauteloso.

Além de Bhaskar e Archer, diversos outros acadêmicos contribuíram significativamente. Tony Lawson usou essa base para criticar a economia neoclássica. Andrew Sayer ofereceu exposições acessíveis, enfatizando a ontologia e a união de explicação causal e compreensão interpretativa. Dave Elder-Vass focou no poder causal emergente das estruturas sociais. George Steinmetz foi crucial na introdução do realismo crítico na sociologia histórica. Frédéric Vandenberghe trabalha na sistematização do realismo crítico em diálogo com outras tradições. Philip Gorski, Doug Porpora, Claire Decoteau e Daniel Little são outros nomes importantes que aplicam e refinam a abordagem.

Como exposto, o realismo crítico proporciona uma justificação filosófica bem fundamentada para as ciências. Ao priorizar a ontologia, distinguir as dimensões do conhecimento e da realidade, postular uma realidade estratificada, emergente e movida por mecanismos causais transfactuais em sistemas abertos, e articular a complexa interação entre estrutura e agência, ele fornece um arcabouço conceitual poderoso para investigar as camadas profundas da realidade. Informa a pesquisa empírica ao sublinhar a necessidade de ir além das aparências, investigar mecanismos subjacentes e reconhecer tanto a objetividade do mundo quanto as limitações e o caráter socialmente construído do nosso conhecimento sobre ele, oferecendo uma alternativa sofisticada ao reducionismo positivista e ao relativismo radical.

SAIBA MAIS

Archer, Margaret S. Culture and Agency: The Place of Culture in Social Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

Archer, Margaret S. Realist Social Theory: The Morphogenetic Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1995

Bhaskar, Roy. A Realist Theory of Science. Hassocks: Harvester Press, 1975

Bhaskar, Roy. The Possibility of Naturalism: A Philosophical Critique of the Contemporary Human Sciences. Brighton: Harvester Press, 1979

Collier, Andrew. Critical Realism: An Introduction to Roy Bhaskar’s Philosophy. London: Verso, 1994.

Elder-Vass, Dave. The Causal Power of Social Structures: Emergence, Structure, and Agency. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

Gorski, Philip S. “A Critique of Critical Realism.” Sociological Theory 26, no. 1 (2008): 39–60.

Gorski, Philip S. “Critical Realism and the Social Sciences.” In The Oxford Handbook of Analytical Sociology, edited by Peter Hedström and Peter Bearman, 281–302. Oxford: Oxford University Press, 2013a.

Lawson, Tony. Economics and Reality. London: Routledge, 1997.

Little, Daniel. Understanding Society: A Blog about Philosophy, Politics, and Economics. 2016. https://understandingsociety.blogspot.com/

Porpora, Douglas V. Reconstructing Sociology: The Critical Realist Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.

Sayer, Andrew. Realism and Social Science. London: Sage, 2000.

Steinmetz, George. “Critical Realism and Historical Sociology.” Sociological Theory 16, no. 1 (1998): 1–16.

Steinmetz, George. “The Politics of Method in the Human Sciences: Positivism and Its Epistemological Others.” In The Politics of Method in the Human Sciences, edited by George Steinmetz, 37–85. Durham: Duke University Press, 2003.

Steinmetz, George. “Critical Realism and the Social Sciences.” Sociological Theory 32, no. 1 (2014): 1–23.

Vandenberghe, Frédéric. Critical Realism in the Human Sciences: An Introduction. Leiden: Brill, 2015.

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