Os clássicos japoneses

Os clássicos japoneses compõem uma tradição literária milenar. A literatura da Terra do Sol Nascente tem uma sensibilidade estética, uma reverência singela pela natureza e uma exploração introspectiva da condição humana.

Desde as primeiras crônicas mítico-históricas e antologias poéticas, essa literatura reflete tanto as tradições xintoístas indígenas quanto a influência da civilização chinesa – manifestada pelo budismo, confucionismo e pela adoção do sistema de escrita (kanji). O desenvolvimento subsequente dos silabários japoneses (kana) abriu caminho para o florescimento de uma literatura vernácula, notavelmente enriquecida pelas contribuições de talentosas escritoras da corte durante o período Heian.

A literatura da Terra do Sol Nascente emprega diversos gêneros, como poesia (waka e haiku), romances (monogatari), diários (nikki), ensaios (zuihitsu) e variadas formas de teatro (Nō, Kabuki e Bunraku).

Período Nara (奈良時代 – Nara Jidai, 710-794): mitologia e poesia sob influência chinesa

Este período estabeleceu as bases de um estado centralizado. Ambienta a criação das primeiras grandes obras literárias escritas. Se essa era foi influenciadas pela cultura chinesa, contudo já empenhadas em registrar as tradições e a identidade japonesas.

  • Kojiki (古事記 – Registro de Assuntos Antigos, 712): A crônica mais antiga do Japão, compilada por ordem imperial. Narra a mitologia da criação do Japão por Izanagi e Izanami, as genealogias das divindades (kami) e a linhagem imperial. O mito de Amaterasu, a deusa do sol, reforça a divindade da linhagem imperial, central no xintoísmo. Escrito em japonês arcaico usando kanji para significado e fonética (kanbun-kundoku), o Kojiki é fundamenta para a compreensão da identidade cultural japonesa e do xintoísmo.
  • Nihon Shoki (日本書紀 – Crônicas do Japão, 720): Conhecido também como Nihongi, é a segunda história mais antiga do Japão. Mais extensa e elaborada que o Kojiki, foi escrita em chinês clássico, seguindo de perto o modelo das crônicas chinesas como Shiji. Assim como o Kojiki, relata mitos de criação e a história primitiva do Japão. Intenciona legitimar o poder imperial e posicionar o Japão como uma nação civilizada, à altura da China. Contém múltiplas versões de alguns mitos, oferecendo uma perspectiva mais variada.
  • Man’yōshū (万葉集 – Coleção das Dez Mil Folhas, c. 759): A primeira grande antologia de poesia japonesa, com cerca de 4.500 poemas (waka) de diversos autores – de imperadores a camponeses. Os poemas, predominantemente em man’yōgana (kanji ou caracteres chineses usados foneticamente para expressar referentes em japonês, um sistema precursor do kana, que reflete a dificuldade de adaptar caracteres chineses à fonética japonesa), abordam temas como amor, luto, natureza e a vida cotidiana. Por exemplo, o poema “Na terra de Yamato, é divino o som do vento nas folhas – mas quem pode ouvi-lo?” ressoa a sensibilidade da época. Essa coletânea estabeleceu muitas das convenções da poesia japonesa posterior.

Período Heian (平安時代 – Heian Jidai, 794-1185): literatura feminina e estética cortesã

Considerado o apogeu da cultura clássica japonesa, este período foi o florescimento da literatura vernácula, em grande parte graças às mulheres da aristocracia da corte de Heian-kyō (atual Quioto).

  • Kokin Wakashū (古今和歌集 – Coleção de Poemas Japoneses Antigos e Modernos, c. 905): A primeira antologia imperial de poesia waka compilada em japonês (usando escrita kana). Seus cerca de 1.100 poemas são organizados por temas sazonais e de amor, assim como as antologias poéticas chinesas, mas imbuídos de uma sensibilidade japonesa, como o wabi-sabi (侘寂): estética da beleza imperfeita e transitória. Essa obra refinou a forma waka e estabeleceu os padrões estéticos e temáticos que dominariam a poesia japonesa por séculos. Sua introdução em japonês (Kanajo), escrita por Ki no Tsurayuki, é um ensaio fundamental sobre a natureza e a história da poesia japonesa.
  • Contos de Ise (伊勢物語 – Ise Monogatari, século X): Uma coleção de episódios curtos que combinam prosa e poesia waka, centrados nas aventuras amorosas e viagens de um protagonista anônimo, frequentemente identificado com o poeta Ariwara no Narihira. É um exemplo clássico de uta-monogatari (poema-conto) e retrata os ideais de elegância e sensibilidade amorosa (miyabi) da corte Heian.
  • O Livro de Cabeceira (枕草子 – Makura no Sōshi) de Sei Shōnagon (清少納言, c. 1002): Uma obra do gênero zuihitsu (ensaios ao sabor do pincel), escrita por Sei Shōnagon, uma dama da corte da Imperatriz Teishi. Consiste em listas, observações espirituosas, anedotas da vida na corte, descrições da natureza e reflexões pessoais, tudo permeado por um olhar arguto e um estilo vivaz.
  • O Conto de Genji (源氏物語 – Genji Monogatari) de Murasaki Shikibu (紫式部, início do século XI): Considerado por muitos o primeiro romance psicológico do mundo e a obra-prima da literatura japonesa. Murasaki Shikibu escreveu essa complexa narrativa, um romance cortesão, que explora a vida e os amores do “Príncipe Radiante” Genji e de seus descendentes. Ela antecipou recursos narrativos modernos como o fluxo de consciência, especialmente na cena em que Genji reflete sobre a efemeridade da beleza. Com uma estrutura complexa e personagens profundamente caracterizados, a obra mergulha nas emoções humanas, nas intrigas da corte, na beleza efêmera e na sensibilidade estética conhecida como mono no aware(物の哀れ –o pathos das coisas).
  • Diários da Corte Heian (平安朝の日記文学 – Heian-chō no Nikki Bungaku): Um gênero proeminente, principalmente cultivado por mulheres da corte, que registravam suas experiências pessoais, observações e sentimentos. Enquanto Sei Shōnagon brilha com ironia em O Livro de Cabeceira, Murasaki revela uma melancolia introspectiva em seu próprio diário, mostrando duas faces da vida cortesã. Outros exemplos notáveis incluem o Kagerō Nikki (蜻蛉日記 – O Diário da Efêmera, c. 974) de uma nobre anônima, e o Sarashina Nikki (更級日記 – O Diário de Sarashina, meados do século XI) de Sugawara no Takasue no Musume. Além delas, Izumi Shikibu (和泉式部), uma das grandes poetisas do período, deixou uma ampla obra poética, muitas vezes centrada em suas apaixonadas experiências amorosas, enriquecendo o corpus da literatura feminina Heian. Ono no Komachi, integrante dos Rokkasen e celebrada como uma das Trinta e Seis Imortais da Poesia, exemplifica a elaboração formal e a intensidade emocional da waka feminina. Izumi Shikibu, autora de um diário próprio e de um corpus poético centrado na experiência amorosa, representa o auge da poesia lírica no período Heian.
  • O Murasaki Shikibu Nikki (紫式部日記 – Diário de Murasaki Shikibu) apresenta um registro introspectivo da vida cortesã, com tom melancólico e observações críticas sobre etiqueta, cerimônias e relações sociais.
  • O Sarashina Nikki (更級日記 – O Diário de Sarashina), de Sugawara no Takasue no Musume, oferece um contraponto relevante ao ponto de vista aristocrático central do período. Sua sensibilidade literária, marcada por sonhos, leituras e idealizações, ilumina a experiência de uma mulher distante do núcleo mais elevado da corte.
  • Taketori Monogatari (竹取物語 – O Conto do Cortador de Bambu, século X): Considerado o mais antigo conto de fadas japonês, narra a história de um velho cortador de bambu que encontra uma bebê dentro de um caule brilhante. A menina, chamada Kaguya-hime (Princesa Brilhante), cresce rapidamente e se torna uma jovem de beleza extraordinária, cortejada por muitos nobres, incluindo o Imperador. Kaguya-hime impõe desafios impossíveis a seus pretendentes e, eventualmente, revela sua verdadeira origem: ela é uma princesa da Lua, que deve retornar ao seu lar celestial. O conto explora temas como a beleza, a impermanência, a ambição e a saudade, com elementos de fantasia, romance e humor. É uma obra fundamental da literatura japonesa, que influenciou gerações de escritores e artistas.

Período Kamakura-Muromachi (鎌倉・室町時代, 1185-1573): literatura guerreira e o budismo

Com a ascensão da classe guerreira (samurai), a literatura passou a refletir novos temas e valores, como lealdade, honra marcial e a transitoriedade da vida, profundamente influenciada pelo Budismo.

  • Konjaku Monogatarishū (今昔物語集 – Coleção de Contos de Antigamente, século XII): Uma coleção de mais de mil contos, de origem japonesa, indiana e chinesa, que ilustra a fusão entre as tradições japonesas e as influências budistas e chinesas. Abrangem histórias de milagres budistas, contos folclóricos e anedotas da vida cotidiana, oferecendo um panorama da mentalidade e das crenças da época.
  • O Conto dos Heike (平家物語 – Heike Monogatari, século XIII): Um épico militar (gunki monogatari) que narra a ascensão e a queda do clã Taira (Heike) em sua luta contra o clã Minamoto (Genji) durante as Guerras Genpei (1180-1185). A versão mais famosa é do século XIV, compilada por Kakuichi. Originalmente recitado por monges cegos (biwa hōshi) acompanhados pelo biwa (alaúde japonês), o som do biwa ecoa: “Os poderosos caem como a lua que se põe sobre o Monte Nasu” – encapsulando o mujō (無常 – impermanência). A obra é impregnada de temas budistas como o karma e a compaixão, retratando vividamente batalhas, heroísmo e tragédia. A abertura célebre – “O som dos sinos do Gion Shōja ecoa a impermanência de todas as coisas” – sintetiza o tema do mujō (無常) que atravessa toda a obra.
  • Hōjōki (方丈記 – Relatos da Minha Cabana de Dez Pés Quadrados) de Kamo no Chōmei (鴨長明, 1212): Um curto ensaio (zuihitsu) que reflete sobre a impermanência da vida e do mundo material (mujō), inspirado por uma série de desastres (incêndios, terremotos, fomes) que assolaram a capital. Chōmei descreve sua decisão de abandonar a vida mundana e retirar-se para uma pequena cabana nas montanhas, buscando a paz na simplicidade e na contemplação da natureza.
  • Tsurezuregusa (徒然草 – Ensaios em Ociosidade ou Fragmentos ao Acaso) de Yoshida Kenkō (吉田兼好, c. 1330-1332): Outra obra-prima do gênero zuihitsu, composta por uma coleção de fragmentos, anedotas, observações estéticas e reflexões filosóficas do monge budista Kenkō. Aborda uma variedade de temas, desde a beleza da natureza e a etiqueta social até a transitoriedade da vida e a importância de apreciar o momento presente, tudo com um tom de desapego e sabedoria sutil.
  • Teatro Nō (能 – Nōgaku): Uma forma de teatro clássico japonês altamente estilizada e refinada, que combina canto, música instrumental, dança e máscaras expressivas. Influenciado pelo sarugaku (teatro popular) e pelo Budismo Zen, o Nō foi desenvolvido principalmente por Kan’ami (観阿弥, 1333-1384) e seu filho Zeami Motokiyo (世阿弥元清, c. 1363-c. 1443). As peças frequentemente se baseiam em lendas, histórias clássicas e temas budistas, explorando o mundo espiritual, fantasmas e emoções humanas profundas, com temas de redenção espiritual (mugen nō). A peça Atsumori, onde um guerreiro fantasma busca redenção, ilustra a fusão entre drama e espiritualidade Zen. Zeami também foi um importante teórico, cujos escritos sobre a arte do Nō (como o Fūshikaden – 風姿花伝) são clássicos por si sós.

Período Edo (江戸時代 – Edo Jidai, 1603-1868)

Um longo período de paz sob o xogunato Tokugawa, que viu o florescimento de uma cultura urbana e a popularização de novas formas literárias e teatrais.

  • Oku no Hosomichi (奥の細道 – Sendas de Oku ou O Caminho Estreito para o Interior Profundo) de Matsuo Bashō (松尾芭蕉, 1694): A obra-prima de Matsuo Bashō, o mais famoso poeta de haiku. É um diário de viagem poético (haibun), que combina prosa evocativa com haiku compostos durante sua jornada pelo norte do Japão. A obra reflete a influência do Zen Budismo, a profunda conexão com a natureza e a busca pela iluminação através da arte e da experiência direta. Bashō elevou o haiku de passatempo intelectual a arte filosófica, incorporando sabi (寂 – solidão elegante) e karumi (軽み – leveza). Seu haiku mais famoso, “Um velho lago – um sapo salta, o som da água” (古池や 蛙飛び込む 水の音), condensa a profundidade de sua estética.
  • Obras de Ihara Saikaku (井原西鶴, 1642-1693): Um dos mais importantes prosadores do período Edo, conhecido por seus ukiyozōshi (浮世草子 – contos do mundo flutuante), que retratavam com realismo e humor a vida dos habitantes das cidades, especialmente comerciantes, artesãos e cortesãs. Suas obras mais famosas incluem Kōshoku Ichidai Otoko (好色一代男 – O Homem que Amava o Amor, 1682) e Nippon Eitaigura (日本永代蔵 – O Cofre Eterno do Japão, 1688).
  • Ugetsu Monogatari (雨月物語), de Ueda Akinari (上田 秋成, 1776): Uma coleção de nove contos de fantasia e terror do período Edo, inspirados em contos chineses e folclore japonês. A obra explora temas como a ilusão, o amor, a guerra e as consequências das escolhas humanas, com uma atmosfera sombria e misteriosa. Ueda Akinari tece narrativas complexas, onde o mundo sobrenatural se mistura com o real. Leva a duvidar das percepções e revela a fragilidade da existência humana. É considerada uma das obras-primas da literatura japonesa, marcante por seu estilo elegante e sua profunda reflexão sobre a natureza humana.
  • Hagakure (葉隠 – Escondido entre as Folhas, 1716) de Yamamoto Tsunetomo (山本常朝): Um manual samurai essencial para entender o Bushidō (武士道 – o caminho do guerreiro) no período Edo. É uma coleção de pensamentos e ensinamentos que defendem a dedicação incondicional à lealdade, honra e preparação para a morte, oferecendo uma visão profunda dos ideais do guerreiro japonês.
  • Teatro Kabuki (歌舞伎) e Bunraku (文楽 – Teatro de Marionetes): Formas de teatro popular que atingiram grande sofisticação. O Kabuki é conhecido por seu estilo extravagante, figurinos elaborados e performances dinâmicas. O Bunraku utiliza grandes marionetes manipuladas por três operadores visíveis, acompanhadas por um narrador (tayū) e música de shamisen. Chikamatsu Monzaemon (近松門左衛門, 1653-1725) é considerado o maior dramaturgo japonês, tendo escrito peças tanto para o Bunraku quanto para o Kabuki. Muitas de suas obras, como o célebre Chūshingura (Os 47 Ronin), exploram o conflito entre o dever social (giri – 義理) e os sentimentos humanos (ninjō – 人情).

Legado

Os clássicos japoneses continuam a inspirar a cultura contemporânea, desde adaptações de Genji Monogatari em mangás até peças de Nō encenadas globalmente. Sua ênfase na natureza, impermanência e introspecção ressoa em obras modernas, como O Livro do Chá de Okakura Kakuzō e no cinema de Akira Kurosawa, demonstrando a permanência e a relevância de sua tradição literária.

SAIBA MAIS

  • Daisaku Ikeda, Os Clássicos da Literatura Japonesa: Os Comentários e Discussões. Rio de Janeiro: Record, 1979.
  • Keene, Donald. Seeds in the Heart: Japanese Literature from Earliest Times. Columbia University Press, 1999.
  • Louis, Frederic, and Roy F. Miller. The Princeton Companion to Classical Japanese Literature. Princeton University Press, 1986.

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