
Escrita pelo pensador russo Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821 – 1881), o Notas do subsolo (1864) é uma das primeiras novelas existencialistas. É narrada em primeira pessoa por um personagem anônimo não confiável. O compilador das notas fragmentárias é um ex-burocrata quarentão que deixou a repartição ao receber uma exígua herança, permitindo-lhe viver uma miserável existência em um porão.
O livro começa com sua auto-apresentação desconfiada das instituições e pautada pela raiva:
Sou um homem doente… Sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou.) Não, senhores, se não quero me tratar é de raiva. Isso os senhores provavelmente não compreendem. Que assim seja, mas eu compreendo. Certamente, não poderia explicar a quem exatamente eu atinjo, nesse caso, com a minha raiva; sei perfeitamente que, não me tratando, não posso prejudicar os médicos; sei perfeitamente bem que, com isso, prejudico somente a mim e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato, é de raiva. Se o fígado dói, que doa ainda mais.
Desde o início, as impressões são de que o ser humano vive em uma constante dor psicológica diante da inércia desoladora da vida, do sistema, da sociedade, enfim, de tudo. Como se vê ao longo da novela, tal enfermidade pode até ser física, mas certamente tem seu lado psicossomático ou mesmo ser inteiramente uma angústia existencial.
Embora observações sarcásticas, amargas e solitárias permeiam todo o curto livro, essas se concentram nos primeiros onze capítulos, a parte chamada de “Subsolo”. A segunda parte (os dez capítulos restantes), intitulada de “A propósito da neve derretida”, narra algumas cenas de ação. Nessas cenas Dostoiévski retrata os desvarios, maldades e hesitações comuns ao ser humano.
Em uma cena o narrador arma tramoias para enfrentar um oficial pelo qual se sente humilhado. Contudo, a vingança não passa de um esbarrão na rua, com o homem do subsolo vestindo um casaco mais caro que conseguiria pagar. O antagonista sequer o notou.
Em outra cena, vai a contragosto à despedida de Zerkov, um ex-colega de escola transferido para outra cidade. Odiava seus colegas quando jovem e os odeia ainda. Depois de um desentendimento, os colegas vão a um prostíbulo e o homem do subsolo resolve ir atrás para tirar satisfações. Mas seus planos mais uma vez acabam frustrados.
Por fim, encontra Liza, uma jovem prostituta. Conversa com Liza e a faz antever sua decadência: ser usada até não ter mais atrativos. Longe de ser um heroico redentor da moça, o homem do subsolo a atrai para seu apartamento no qual segue uma relação abusiva e contraditória.
Essa sucessão de reflexões com excessiva autoconsciência e atos desprezíveis causam impacto pelo estilo ambíguo do monólogo interior aliado à falta de fidedignidade das confissões ou autobiografias – algo que faz duvidar de Agostinho, Rousseau ou Thomas de Quincey – como o fazemos com o Brás Cubas de Machado de Assis ou o louco do diário de Gógol.
Eu, pelo menos, só recentemente tomei coragem para recordar algumas das minhas aventuras passadas, as quais até agora tinha evitado com uma certa inquietação. E agora, quando não só recordei, como até me decidi a escrevê-las, agora exatamente quero tirar a prova: é possível alguém ser inteiramente sincero consigo mesmo e não temer toda a verdade? A propósito: Heine afirma que é quase impossível existirem autobiografias sinceras, porque na certa o ser humano mentirá, falando de si mesmo. Na opinião dele, por exemplo, Rousseau sem dúvida mentiu sobre si mesmo em suas Confissões e fez isso até deliberadamente, por vaidade. Estou convencido de que Heine está certo; entendo perfeitamente como, às vezes, alguém pode confessar uma série de crimes por pura vaidade e percebo até muito bem de que tipo pode ser essa vaidade. Mas Heine comentava sobre uma pessoa que fez uma confissão pública. No meu caso, escrevo só para mim, e declaro de uma vez por todas que, se escrevo como se me dirigisse a leitores, é unicamente por exibicionismo, e porque desse modo me é mais fácil escrever. Isso é apenas forma, uma forma vazia, eu nunca terei leitores. Já havia declarado isso.
O homem do subsolo alterna sua avaliação de si e de outros em termos de inferioridade ou superioridade. Esta paranoia e falta de confiança o faz invejar os homens de ação – os homens “reais” – livres para tomar atitudes sem pensar nas consequências. São epítomes de uma esperança de progresso e desenvolvimento. No entanto, há momentos que o homem do subsolo se sente superior a eles, pois movido pela consciente falta de racionalidade é permitido que despreze e odeie.
A tese subjacente é que não é possível escapar do sofrimento. Os grandes planos para melhorar o mundo resultam ainda em mais sofrimento. Não que seja em si contra uma noção de progresso, mas constata os limites da busca à felicidade. Não faria sentido a confiança na razão para conquistar a felicidade enquanto a busca incessante da felicidade é um objetivo sem sentido.
De sua dificuldade em conectar com outras pessoas resulta no paradoxo da necessidade de sentir a proximidade humana. Inconsistente, é um homem furioso com todos e consigo mesmo. Nas concatenações de autossabotagem, há o desejo de quebrar com tudo, de quebrar com a necessidade de ser legal com tudo e todos. Seu desejo é que outros compartilhe algo com ele: sua miséria.
Não há explicação patológica para sua maldade. Tampouco há escusas para sua maldade na escolha racional, pois o personagem não possui fins para justificar seus meios. Ademais, é consciente acerca da moral, não tendo refúgio no erro pela ignorância. Entretanto, não age por um mero arbítrio.
Em seu desprezo, desdenha tanto do determinismo quanto do livre arbítrio. O livre arbítrio só leva o ser humano a se debater impotentemente. O que há é um espectro de possibilidades como as teclas em número limitado de um piano no qual se tem a impressão de poder fazer música infinita. Contudo, no fundo tudo não passa de uma escolha entre as possibilidades que resultem em prováveis ganhos.
Novela densa, serve como ponto de partida ou um texto para se ler em paralelo com Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche, Kafka, Sartre ou Camus. Seus temas, os questionamentos e o retrato da instrospecção fazem desse curto livro uma obra clássica.
SAIBA MAIS
DOSTOIEVSKI, Fiódor. Notas do subsolo. Tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre: L&PM, 2009.
https://ensaiosenotas.com/2016/05/10/o-grande-inquisidor/
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Citação com autor incluído no texto: Alves (2019)
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Referência:
ALVES, Leonardo Marcondes. Dostoievski: Notas do subsolo. Ensaios e Notas, 2019. Disponível em: https://wp.me/pHDzN-51z . Acesso em: 20 jul. 2020.
Resenha profunda, incrível! Livro muito bom!
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