Immanuel Wallerstein: A Teoria dos Sistemas-Mundo

Em um palco onde as nações insistem em declamar seus monólogos de autonomia e soberania, imaginem a audácia, quase uma heresia para os ouvidos mais nacionalistas, de um pensador que sobe ao proscênio e declara: “Senhoras e senhores, vossas histórias particulares, por mais comoventes ou trágicas que sejam, são apenas atos de uma peça muito maior, uma intrincada e, por vezes, cruel ópera chamada Sistema-Mundo Capitalista!” Este foi, em essência, o gesto intelectual de Immanuel Wallerstein (1930-2019) .

Enquanto o século XX se esvaía entre a euforia do progresso e o espectro das suas próprias contradições – impérios ruindo, novas potências buscando seu lugar ao sol, e a velha melodia da desigualdade insistindo em ser o leitmotiv global –, Wallerstein acabou com a graça (e discurso confiante) das elites globais.

Immanuel Maurice Wallerstein foi um geógrafo, sociólogo e historiador social norteamericano e arquiteto da Teoria dos Sistemas-Mundo (World-Systems Theory). Sua obra monumental buscou reinterpretar a história do capitalismo moderno não como uma coleção de histórias nacionais separadas, mas como a evolução de um único sistema global integrado, caracterizado por uma divisão hierárquica do trabalho, ciclos econômicos e tendências seculares de crise.

A Teoria dos Sistemas-Mundo representa a maior contribuição de Wallerstein, oferecendo um novo quadro para analisar a história e a dinâmica global.

  1. Teoria dos Sistemas-Mundo (1974-)
  2. A tese central é que, desde o “longo século XVI” (aproximadamente 1450-1640), o mundo tem sido dominado por um único “sistema-mundo” capitalista. Este sistema não é um império mundial (com um único centro político), mas uma economia-mundo (com múltiplos centros políticos dentro de um único mercado integrado e divisão de trabalho). Estruturalmente, este sistema é hierarquizado em três posições interdependentes:
    • Centro (Core): Estados e regiões com produção tecnologicamente avançada, altos salários, capital concentrado e forte poder estatal. Exploram as outras zonas (ex: Grã-Bretanha no século XIX, EUA no século XX).
    • Periferia (Periphery): Regiões especializadas na produção de matérias-primas e produtos agrícolas, com mão de obra barata (frequentemente sob condições coercitivas), tecnologia de baixo nível e Estados fracos. São exploradas pelo centro (ex: colônias na América Latina, África e Ásia).
    • Semiperiferia (Semi-periphery): Estados e regiões em posição intermediária, que são explorados pelo centro, mas também exploram a periferia. Possuem uma mistura de processos produtivos e um Estado com força variável. São politicamente cruciais para a estabilidade do sistema, atuando como uma zona de amortecimento e mobilidade potencial (ex: Portugal e Espanha no início, nações BRICS em tempos mais recentes). A teoria também incorpora a análise de ritmos cíclicos (como as ondas longas de Kondratieff, de 50-60 anos, com fases de expansão e estagnação econômica) e tendências seculares (processos de longo prazo, como a mercantilização crescente, a proletarização e a crise estrutural do sistema). Wallerstein buscou uma periodização anti-Eurocêntrica, argumentando que o sistema era global desde seu início.
  3. O Sistema Mundial Moderno (The Modern World-System, 4 vols., 1974-2011): Esta obra (embora inacabada) é a aplicação histórica detalhada de sua teoria, traçando a emergência da economia-mundo europeia (Vol. 1: 1450-1640), a consolidação da divisão centro-periferia (Vol. 2: 1600-1750), a segunda grande expansão do sistema (Vol. 3: 1730-1840s) e o triunfo do liberalismo centrista (Vol. 4: 1789-1914).
  4. Capitalismo Histórico (Historical Capitalism, 1983): Uma síntese concisa de seus argumentos centrais, onde Wallerstein define o capitalismo não como um sistema natural ou eterno, mas como um sistema histórico específico, que depende fundamentalmente da existência de um sistema interestatal competitivo (sem um império mundial) e que é, por sua natureza, polarizador, gerando e aprofundando desigualdades entre centro, semiperiferia e periferia.

Além da teoria do sistema-mundo, Wallerstein desenvolveu conceitos críticos para analisar a cultura e a política do sistema-mundo.

  1. Conceito de Geocultura: Analisou como certas ideologias se tornam dominantes e legitimadoras no sistema-mundo. Argumentou que o liberalismo do século XIX, com sua ênfase no progresso, no cientificismo e em ideias influenciadas pelo darwinismo social, funcionou como a “geocultura” do sistema capitalista, fornecendo seu quadro cultural e justificando suas hierarquias.
  2. Movimentos Antissistêmicos: Estudou a história dos movimentos sociais e trabalhistas que desafiaram o capitalismo (os “movimentos antissistêmicos”). Concluiu, de forma controversa, que muitos desses movimentos (tanto socialistas quanto nacionalistas) acabaram sendo “incorporados” ao sistema ao adotarem estratégias focadas na conquista do poder estatal, aceitando compromissos reformistas e tornando-se burocratizados, limitando assim seu potencial transformador radical.
  3. Análise da Crise Estrutural: Nas últimas décadas de seu trabalho, Wallerstein argumentou que o sistema-mundo capitalista entrou em uma crise estrutural terminal, iniciada simbolicamente com a “revolução mundial de 1968”. As causas dessa crise seriam a aproximação de limites ecológicos, a queda tendencial da taxa de lucro (devido ao aumento dos custos de produção e impostos) e a crescente força das demandas democráticas e sociais (“desmercantilização”), tornando a acumulação incessante de capital cada vez mais difícil. Ele previa um período de desintegração caótica e bifurcação histórica.

A Teoria dos Sistemas-Mundo de Wallerstein não escapou ao escrutínio crítico. Uma das objeções mais frequentes reside na acusação de determinismo econômico, argumentando-se que a teoria tende a relegar a autonomia das esferas cultural, política e ideológica a um papel secundário, quase como meros reflexos da estrutura econômica global. Outra linha de crítica aponta para uma suposta subestimação da agência dos atores localizados na periferia e na semiperiferia do sistema. Segundo essa perspectiva, a teoria poderia pintar um quadro excessivamente passivo desses atores, negligenciando sua capacidade de resistência, inovação e influência nas dinâmicas globais. Por fim, e talvez de forma mais complexa, persistem debates acerca da possibilidade de que sua periodização e análise, apesar das intenções declaradas de Wallerstein, não permaneçam, em última instância, fundamentalmente Eurocêntricas em seu ponto de partida conceitual e em seu foco analítico, mesmo buscando transcender essa perspectiva.

Comparação com a Teoria de Dependência latinoamericana

A Teoria do Sistema-Mundo, conforme proposta por Immanuel Wallerstein, e a Teoria da Dependência, articulada por pensadores como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, apresentam origens em uma crítica ao desenvolvimento com desigualdade entre países de centro e países de periferia. Apesar de divergências em método, as duas abordagens efetuam a análise do capitalismo como uma estrutura de hierarquia em escala global, uma estrutura que mantém a dominação na economia.

Existem pontos de convergência entre as teorias. Ambas possuem uma visão de hierarquia do capitalismo. A Teoria da Dependência sustenta que países da periferia, localizados na América Latina, África e Ásia, vivenciam uma subordinação na estrutura em relação a países de centro, como os Estados Unidos e nações da Europa. O desenvolvimento do “centro” possui uma relação de dependência com o subdesenvolvimento da “periferia”. Essa relação se manifesta por meio da exploração de recursos, da utilização de mão de obra com custo reduzido e da dependência em tecnologia. A Teoria do Sistema-Mundo segmenta o mundo em núcleo, periferia e semiperiferia, dentro de um sistema de capitalismo global com integração. O núcleo exerce dominação na economia, enquanto a periferia provê matérias-primas e mão de obra passível de exploração.

Ademais, ambas as teorias formulam uma crítica ao eurocentrismo e ao desenvolvimentismo. Elas rejeitam a concepção de que países da periferia podem alcançar o “desenvolvimento” pela replicação do modelo da Europa ou da América do Norte. Wallerstein e os teóricos da dependência encaram o capitalismo como um sistema que gera desigualdade na estrutura, e não como uma fase de transição. A influência do marxismo e da economia política é outro ponto em comum. A Teoria da Dependência fundamenta-se em Marx, e também em pensadores como Paul Baran e Paul Sweezy, com a teoria do capitalismo de monopólios. A Teoria do Sistema-Mundo, por sua vez, incorpora contribuições de Braudel, com a história de longa duração, e de Marx, com a luta de classes em uma dimensão global.

Contudo, existem diferenças principais. A Teoria da Dependência direciona seu foco para a relação centro-periferia, realizando uma análise com maior ênfase regional, em particular sobre a América Latina. Já a Teoria do Sistema-Mundo analisa o capitalismo como um sistema-mundo com perspectiva histórica, com início no século XVI. A Teoria da Dependência coloca ênfase na exploração no comércio e nas finanças, como a dívida externa e os termos de troca com desigualdade. A Teoria do Sistema-Mundo examina a divisão do trabalho em âmbito internacional e os movimentos de ciclo da economia-mundo, como a hegemonia da Holanda, da Grã-Bretanha e da América do Norte. No que tange a propostas, alguns teóricos da dependência, a exemplo de Cardoso, admitem reformas dentro do capitalismo, o chamado “desenvolvimento com dependência”. Wallerstein adota uma postura de maior radicalidade: o sistema-mundo do capitalismo encontra-se em crise na estrutura e precisa ser superado.

O impacto de Wallerstein sobre a Teoria da Dependência é notável. Wallerstein promoveu uma ampliação do escopo da Teoria da Dependência, ao inserir a América Latina em uma análise com dimensão global e histórica, e não apenas em um contexto após o período colonial. Sua concepção de “semiperiferia”, aplicável a países como Brasil e China, auxiliou na explicação de como algumas nações ascendem, mas sem que ocorra um rompimento com a lógica de dominação. Críticos da América Latina, como André Gunder Frank, já haviam formulado a ideia de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, porém Wallerstein sistematizou tal noção em uma teoria de história com abrangência.

Um exemplo prático da aplicação das duas teorias pode ser o Brasil. Sob a ótica da Teoria da Dependência, o Brasil passou por um processo de industrialização, mas preserva uma condição de dependência em relação à tecnologia de outros países e aos fluxos de finanças em escala global. A desindustrialização em período recente poderia reforçar a condição de periferia. Na perspectiva do Sistema-Mundo, o Brasil classifica-se como semiperiferia: não é alvo de exploração no mesmo nível que a África, mas tampouco exerce dominação sobre o núcleo. Sua posição sofre alterações conforme as dinâmicas da economia-mundo, como se observou na ascensão durante os anos 2000 com a valorização de commodities, seguida por um período de crise.

Relevância Contemporânea

A Teoria dos Sistemas-Mundo de Immanuel Wallerstein demonstra sua contínua relevância como um arcabouço analítico formidável para a compreensão das intrincadas dinâmicas que moldam o cenário global contemporâneo. Através de suas lentes, torna-se possível decifrar fenômenos cruciais como a ascensão da China e de outras potências emergentes, cuja trajetória e dinâmica se encaixam na categoria da semiperiferia dentro da estrutura sistêmica. A teoria também ilumina as desigualdades intrínsecas que permeiam as complexas cadeias globais de suprimentos e a divisão internacional do trabalho, expondo as assimetrias de poder e os fluxos desiguais de valor.

Ademais, a crise climática, que assola o planeta, pode ser interpretada, sob a perspectiva wallersteiniana, como uma manifestação aguda da crise estrutural inerente ao sistema-mundo capitalista e de seus limites ecológicos cada vez mais evidentes. Finalmente, o ressurgimento de tendências protecionistas e nacionalistas em diversas partes do globo emerge como um possível sintoma da incipiente desintegração da ordem liberal global, outrora hegemônica, revelando as tensões e contradições latentes no sistema contemporâneo. Assim, a Teoria dos Sistemas-Mundo persiste como uma ferramenta essencial para navegar pela complexidade e pelas transformações do nosso tempo.

Seu trabalho elucida a análise crítica das origens históricas, da lógica operacional e das contradições inerentes ao capitalismo global. Como ele afirmou em 2003: “O capitalismo como sistema histórico tem estado em crise terminal desde a revolução mundial de 1968, e estamos vivendo através de sua desintegração caótica.”

Wallerstein obteve seu PhD na Universidade de Columbia em 1959, onde também lecionou por vários anos (1958-1971). Posteriormente, tornou-se Professor Distinto na Universidade de Binghamton (1976-1999), onde fundou e dirigiu o Centro Fernand Braudel para o Estudo das Economias, Sistemas Históricos e Civilizações. Seu trabalho é notável por sua capacidade de síntese interdisciplinar, combinando insights da sociologia histórica, da economia política marxista, da teoria da dependência latino-americana e da historiografia da Escola dos Annales francesa (especialmente a ênfase na longue durée de Braudel). O foco central de sua obra foi desenvolver uma análise macro-histórica e estrutural do capitalismo como um sistema histórico específico, com início, desenvolvimento e eventual fim.

SAIBA MAIS

Wallerstein, Immanuel. The Modern World-System (O Sistema Mundial Moderno), 4 volumes publicados entre 1974 e 2011.

Wallerstein, Immanuel. Historical Capitalism (Capitalismo Histórico), 1983.

Wallerstein, Immanuel. World-Systems Analysis: An Introduction (Análise dos Sistemas Mundiais: Uma Introdução), 2004.

Wallerstein, Immanuel. The End of the World as We Know It: Social Science for the Twenty-First Century (O Fim do Mundo Como o Concebemos: Ciência Social para o Século XXI), 1999.

Wallerstein, Immanuel. Utopistics: Or, Historical Choices of the Twenty-first Century (Utopística: Ou, As Escolhas Históricas do Século Vinte e Um), 1998.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Um site WordPress.com.

Acima ↑