Notou que sua vida hoje está em uma fragmentação inegável? Desde a sobrecarga de informações digitais até a fluidez das relações humanas, a descontinuidade permeia a experiência contemporânea. Contudo, essa aparente liberdade de conexão pode mascarar um processo mais complexo: a potencial dissolução de narrativas coerentes e de identidades fixas.
E se nossa sociedade, sem que percebamos, estivesse nos transformando em um aglomerado de fragmentos, como um fluxo incessante de posts e stories? Essa é, precisamente, a provocação que emerge do pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari: à medida que as redes e as multiplicidades nos moldam, podemos perder a capacidade de buscar um centro e de resistir aos fluxos que nos atravessam.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, pensadores franceses do século XX, desorganizam estruturas estabelecidas na filosofia, psicanálise e política. Suas obras, fruto de uma colaboração intelectual intensa, propõem um pensamento que celebra a multiplicidade e a fluidez contra a rigidez das identidades fixas.

Filosofia é desenvolver conceitos
A Crítica da psicanálise: para além de Édipo
Em Anti-Édipo, Deleuze e Guattari rejeitam a universalidade do complexo de Édipo. Para eles, o desejo não surge da falta, como postulado por Lacan, mas é uma força produtiva e criativa. Introduzem o conceito de máquinas desejantes, onde o desejo opera por meio de conexões e fluxos, não por repressão. Sua proposta, a esquizoanálise, é uma alternativa à psicanálise. Ela se concentra em formas coletivas e impessoais de desejo, buscando libertar-se de constrangimentos familiares e capitalistas.
Capitalismo e esquizofrenia: ao Anti-Édipo a Mil Platôs
A dupla explora a relação entre capitalismo e desejo. O capitalismo atua como uma força desterritorializante, desfazendo estruturas sociais tradicionais. Contudo, ele reterritorializa essas estruturas em novas formas de controle. O Corpo sem Órgãos (CsO), conceito de Antonin Artaud, representa um estado de potencialidade pura, onde o desejo flui livremente, sem organização em estruturas fixas.
Apresentam a distinção entre o modelo arbóreo e o rizomático. O modelo arbóreo é hierárquico, centralizado e linear, exemplificado pelo Estado, patriarcado ou religiões organizadas. O modelo rizomático é descentralizado, não hierárquico e múltiplo, como a internet, o nomadismo ou movimentos de guerrilha. Sendo um dos conceitos que mais aprecio desses autores, vale a pena elaborar um pouco.
O modelo arbóreo possui:
- Hierarquia: tem um centro, raízes profundas e ramificações que se originam de um ponto único. Pense em uma árvore genealógica, uma estrutura organizacional clássica ou mesmo a forma como o conhecimento é frequentemente compartimentalizado e hierarquizado (da “base” para o “topo”).
- Linearidade: segue uma progressão de causa e efeito, um ponto de partida e um ponto final. O conhecimento é visto como se acumulando de forma ordenada.
- Unidade e causalidade: presume um ponto de origem único e uma determinação causal clara.
Em oposição a isso, o rizoma é um modelo de organização que se inspira nas estruturas subterrâneas de certas plantas, como a grama ou o gengibre. Suas características incluem:
- Não-hierarquia e acêntrico: não possui um centro, nem uma origem fixa. Qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro ponto. Imagine as raízes de uma grama se espalhando horizontalmente, sem um tronco principal.
- Multiplicidade: não se reduz a uma unidade ou a uma dualidade. É sempre um “e…e…e…”, uma rede de conexões diversas.
- Conexão e heterogeneidade: seus elementos são diversos e heterogêneos, mas estão interligados. Uma linha do rizoma pode conectar coisas de naturezas completamente diferentes.
- Ruptura e recomeço: se uma parte do rizoma é cortada ou quebrada, ele pode brotar de outro lugar, ou as conexões podem se refazer em novas direções. Isso representa a capacidade de reinvenção e a resistência à totalização.
- Cartografia em vez de rastreamento: em vez de “rastrear” um caminho predefinido (como em um mapa de árvore), o rizoma propõe “cartografar” um território, explorando suas conexões e possibilidades de forma aberta e dinâmica.
A organização rizomática desafia a forma como aprendemos e organizamos a informação. Em vez de uma busca por fundamentos e verdades absolutas, o rizoma sugere que o conhecimento é uma rede em constante construção, onde diferentes ideias se conectam e se transformam. Isso ocorre na internet, com sua estrutura de hiperlinks e redes sociais, é frequentemente citada como um exemplo de sistema rizomático.
Também é esse um modelo para a organização social e política que resiste à centralização e ao controle. Movimentos sociais descentralizados, redes de ativismo e formas de resistência que não dependem de uma liderança única podem ser compreendidos através da lógica rizomática.
No contexto do Anti-Édipo, o rizoma ilustra como o desejo não é linear ou reprimido, mas uma força produtiva que se conecta a diversos “fluxos” e “máquinas desejantes”, escapando das estruturas familiares e sociais impostas.
O rizoma promove a ideia de que a criação artística e intelectual não segue regras rígidas, mas é um processo de experimentação e conexão de elementos díspares, gerando novas formas e significados.
Nomadologia e a Máquina de Guerra
A máquina de guerra é um conceito central. Não se refere apenas à violência, mas ao movimento e à resistência à captura pelo Estado. Enquanto o Estado busca controlar e estratificar, o pensamento nômade resiste a estruturas fixas. Exemplos incluem práticas artísticas, revolucionárias ou nômades.
Devir e Multiplicidade
O devir (devenir) é um processo de transformação que transcende identidades fixas. Isso inclui o devir-animal, devir-mulher ou devir-imperceptível. As multiplicidades são entidades irredutíveis a uma única identidade. Elas existem como arranjos dinâmicos e mutáveis.
Agenciamentos
Os agenciamentos maquínicos são combinações de corpos, ações e discursos que produzem a realidade. Uma escola, um protesto ou uma linguagem são exemplos. A enunciação coletiva sugere que o significado é produzido coletivamente, não por indivíduos isolados.
Literatura Menor
Em Kafka: Por uma Literatura Menor, Deleuze e Guattari analisam a desterritorialização da linguagem. Escritores minoritários subvertem a linguagem dominante, como Kafka escrevendo em alemão sendo um judeu checo. A literatura, para eles, é uma ferramenta de resistência com dimensões políticas e coletivas.
Imanência vs. Transcendência
Defendem um plano de imanência, um espaço filosófico onde a vida é compreendida de dentro, sem apelar a hierarquias externas (Deus, Estado, Razão). Opõem-se à crítica da representação, favorecendo processos e devires em detrimento de representações fixas.
Os pensadores
A influência de Deleuze e Guattari alcança o pós-estruturalismo, a pós-modernidade e a teoria crítica. Impactaram o pensamento anarquista, a teoria da mídia e a arte contemporânea, além de inspirar movimentos como o aceleracionismo e o novo materialismo.
Ambos pensadores transformaram a filosofia ao rejeitar identidades fixas, abraçar a multiplicidade e explorar novas formas de conceber o desejo, o poder e a subversão.
Algumas críticas que receberam são pertinentes. Empregaram um vocabulário idiossincrático e obscuro para os não iniciados, por vezes, para dizer sobre ideias já estabelecidas (como a teoria dos sistemas e da complexidade). Tidos como pós-estuturalistas e questionadores, na prática ofereceram uma estrutura mais complexa, todavia, ainda estrutura.
Gilles Deleuze (1925–1995) era filósofo. O francês revolucionou a metafísica, o desejo e o poder. Formado na Sorbonne, iniciou sua carreira como historiador da filosofia, com estudos influentes sobre Spinoza, Nietzsche, Kant e Bergson. Suas obras solo, como Diferença e Repetição (1968) e Lógica do Sentido (1969), questionaram o pensamento ocidental tradicional ao priorizar a diferença sobre a identidade. Sua colaboração com o psicanalista Félix Guattari resultou em trabalhos seminais como Anti-Édipo (1972) e Mil Platôs (1980), que criticaram o capitalismo, a psicanálise e as estruturas hierárquicas. Deleuze enfrentou problemas de saúde e tirou a própria vida em 1995. Permanece como um dos pensadores mais originais do século XX.
Félix Guattari (1930–1992) foi um psicanalista e militante. Trabalhou na clínica psiquiátrica experimental La Borde, onde desenvolveu abordagens radicais para a terapia. Ativista político, engajado em movimentos anticoloniais e de extrema-esquerda, ele trouxe uma perspectiva revolucionária à psicanálise, rejeitando a ortodoxia freudiana e lacaniana. Sua colaboração com Deleuze produziu obras-chave na teoria crítica, mesclando marxismo, anarquismo e esquizoanálise. Diferente de Deleuze, Guattari se envolveu mais diretamente em lutas políticas, incluindo ecologia e ativismo de mídia. Faleceu de ataque cardíaco em 1992, mas suas ideias sobre subjetividade coletiva e resistência permanecem influentes na política radical e na filosofia.
Obras Selecionadas
Anti-Édipo (1972) – Crítica da psicanálise e do capitalismo.
Mil Platôs (1980) – Expansão sobre rizomas, nomadologia e agenciamentos.
Kafka: Por uma Literatura Menor (1975) – Sobre literatura e desterritorialização.
O que é Filosofia? (1991) – Define a filosofia como a criação de conceitos.

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