Fahrenheit 451

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“451 graus Fahrenheit: a temperatura na qual o papel dos livros entra em combustão. ”

Com essa seca explicação, o autor de ficção científica norte-americano Ray Bradbury (1920 – 2012) introduz seu romance distópico, situado no século XXIV nos Estados Unidos.

O protagonista é o bombeiro Guy Montag, para quem:

Era um prazer especial ver as coisas engolidas, ver as coisas enegrecidas e mudadas. Com o bocal de bronze em seus punhos, com esta grande serpente cuspindo o venenoso querosene sobre o mundo, o sangue latejava em sua cabeça. E suas mãos eram as mãos de um maestro fantástico dirigindo todas as sinfonias incinerando e torrando para acabar com as ruínas de farrapo e carvão da história. Com seu capacete simbólico numerado 451 em sua cabeça impassível e seus olhos completamente alaranjados da chama com o pensamento do que viria depois. Acendeu o ignitor e a casa foi tomada por um incêndio que queimou o céu noturno em vermelho, amarelo e preto. Encontrou uma nuvem de vaga-lumes. Queria, acima de tudo, como a velha piada, empurrar um machimelo com um espeto no fogo ao passo que os livros, batendo as asas de pombos, morriam no pórtico e no gramado da casa. Enquanto os livros subiam em redemoinhos cintilantes e dissipavam-se em um vento que ficou escuro com a queima.

Guy tem uma vida pacata com sua esposa Mildred, com quem pouco conversa. A ignorância de Guy Montag é desafiada quando se aproxima a vizinha Clarisse. Clarisse McClellan é uma adolescente sonhadora, que aprecia coisas da natureza e se maravilha com os enigmas da vida.

Para evitar debates perigosos ou temas desgostosos, as pessoas pararam de ler. Aliás, a leitura foi proibida. O ideal é uma vida de conformismo, tédio e sem criatividade. Em contrapartida o povo tem uma vida mansa, alimentado pelo entretenimento via televisão e pílulas de felicidade. Os rádios portáteis Seashells acoplados aos ouvidos entupiam as pessoas com informações irrefletidas constantemente. Quando os ilegais livros são descobertos, os bombeiros – como Montag – ateiam-lhes fogo.

Além da queima de livro, outro mecanismo de controle é um cachorro mecânico. A máquina é capaz de detectar qualquer diferença no meio da sociedade, rastrear pelo cheiro os dissidentes e matá-los com injeções letais.

Depois de uma queimada de livros, Montag roubou um exemplar. Guy tenta, sem sucesso, entabular uma conversa sobre o livro com sua esposa. Seu chefe, Capitão Beatty, fareja o “crime” de Guy e tenta convencê-lo a destruir o livro.

Sem querer revelar mais partes da obra, vale mencionar os leitores do submundo. O professor Faber, um literato marginalizado e a consciência de Montag, tem a esperança de voltar a publicar e discutir livros. Outro leitor é Granger, líder de um grupo que memoriza livros.

A obra publicada durante o marcatismo em 1953 apresenta uma distinção notável de outras clássicas distopias. A imposição da censura, a repressão dos dissidentes e o controle pelo medo são feitos pela sociedade, não por um estado totalitário. As instituições só positivaram o que a sociedade queria: a ignorância. Com elementos comuns das clássicas distopias 1984 e Admirável Mundo Novo, o romance de Bradbury concilia censura com o excesso de informação.

O paralelismo entre a ficção de Bradbury e a realidade é preocupante. O livro é ambientado em uma materialista sociedade de consumo, alienada, como diria Theodor Adorno, pela indústria cultural. Há excesso de informação, mas não conhecimento, tampouco sabedoria.

Como no raciocínio de memes, o Capitão Beatty emprega doses mínimas de informações aforísticas para vencer unilateralmente o debate com Guy.  É emblemática a redução da complexidade do conhecimento nesse discurso do Capitão Beatty:

Beatty olhou para a figura de fumaça que soltou no ar. “Imagine isso.  O homem do século XIX com seus cavalos, cães, carroças, em câmera lenta. Então, no século XX, acelere sua câmera. Os livros são mais curtos. São condensações, resumos, tabloides. Tudo se resume a uma mordaça, a um estalo final. (…)  Os clássicos cortados para se encaixar em programas de rádio de quinze minutos, depois recortados para preencher uma coluna de livros de dois minutos, terminando finalmente como um verbete de dicionário de dez ou doze linhas. Estou exagerando, é claro. Os dicionários eram para referência. Mas muitos eram os quais o único conhecimento de Hamlet (você certamente conhece o título, Montag. Provavelmente é apenas um leve rumor de um título para você, Sra. Montag), o único conhecimento, como eu disse, de Hamlet era um resumo de uma página em um livro que afirmava: “agora, pelo menos, você pode ler todos os clássicos; mantenha-se informado como seus vizinhos. Você vê? Do berçário à faculdade e de volta ao berçário; eis o padrão intelectual dos últimos cinco séculos ou mais”.

O uso da tecnologia para controle é temerário. Como o cachorro mecânico, novos meios de farejar os discordantes por biometria ou big data reduz a liberdade de pensamento.

A queima de livros, desde que o imperador Qin Shi Huang queimou o passado da China, infelizmente se repete. Fora o lendário (mas ahistórico) incêndio da Biblioteca de Alexandria pelo califa Omar, a história está cheia de incinerações de livros. Eventos sempre movidos pela ignorância, como na anedota de o General Justino Alves Bastos ordenar durante a ditadura militar a queima de livros como O vermelho e o negro de Stendhal, pelo seu título que denunciava ser obra “comunista”.

E não é só com a queima de livros que Bradbury repete a história. Similar aos lolardos e valdenses que com a memória contornavam a proibição de portar livros banidos, Montag memoriza o livro de Eclesiastes. Também o faz com a Bíblia o protagonista representado por Denzel Washington em O livro de Eli (2010).

O romance relativamente curto (umas 40.000 palavras) é um alerta contra o consumismo acrítico das informações, contra a censura em nome de um suposto bem comum, contra a misologia rampante direcionada contra a inquirição livre, a reflexão ponderada e a ciência.

VEJA TAMBÉM

A HBO está para lançar no começo de 2018 um filme dirigido por Ramin Bahrani que, pelo trailer, promete ser uma produção boa.

Outra adaptação ao cinema foi feita em 1966 por François Truffaut, com produção britânica. Segue o trailer abaixo e uma resenha na Revista Espaço Acadêmico e outra resenha do mesmo livro no blog Minhas Leituras.

Em português a Biblioteca Azul (Globo Livros) publica o livro, sendo a última edição de 2012.

6 comentários em “Fahrenheit 451

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