A Carta de Kurukan Fuga, nascida no coração pulsante do Império do Mali do século XIII, encapsula princípios de justiça e humanidade subsistem por séculos. Proclamada após a decisiva vitória de Sundiata Keita na Batalha de Kirina (1235), essa declaração oral cimentou a união dos clãs mandingas e erigiu um dos mais antigos pilares da ética social e dos direitos humanos na história.

Investigar a Carta de Kurukan Fuga sob as lentes da história, da interdisciplinaridade, da antropologia e do direito revela um testemunho eloquente do poder da palavra e da memória. Além de ser uma declaração (axiomática, por sinal) de direitos, é uma das mais antigas constituições ainda em uso, se considerarmos que vários seus artigos foram recepcionados e positivados em estados do Sahel, como Mali, Guiné, Burkina Faso, Níger, Senegal e Mauritânia.
A Carta de Kurukan Fuga, assim denominada por seu local de promulgação, emerge em um momento axial da formação do Império do Mali. A figura carismática de Sundiata Keita, o venerado “Leão do Mandê”, cuja vida e feitos são narrados na Epopeia de Sundiata, transmitida oralmente pelos habilidosos griots, é intrinsecamente ligada à gênese da Carta. Embora a primeira transcrição detalhada date surpreendentemente de 1967, vestígios fragmentados coletados desde o final do século XIX já indicavam a antiguidade e a tenacidade dessa tradição oral. A audaciosa afirmação do historiador Djibril Tamsir Niane, que descreveu a Carta como uma “declaração dos direitos do homem” de 1236, destaca sua importância como um precursor conceitual dos modernos instrumentos de direitos humanos, antecedendo em séculos muitos documentos escritos.
A antropologia aponta os complexos mecanismos de transmissão oral e as fascinantes variações interpretativas entre as diversas linhagens de griots. A rivalidade ocasional entre esses zelosos contadores de história, com diferentes ênfases nos aspectos cruciais – sejam eles políticos, sociais ou espirituais – da Carta, longe de diminuir sua relevância, revela a dinâmica inerente às tradições orais e a necessidade de uma análise complexa de seu conteúdo. Essa diversidade de interpretações, longe de enfraquecer a Carta, demonstra sua notável vitalidade e sua capacidade de ressoar com as múltiplas facetas da experiência e dos valores mandingas.
A Carta de Kurukan Fuga se manifesta como um artefato cultural de alto valor. Sua própria natureza oral destaca a primazia da memória coletiva e da transmissão do conhecimento através da palavra falada em sociedades que precederam a escrita generalizada. As nuances em suas narrativas refletem não apenas possíveis disputas de poder ou diferentes ênfases culturais, mas também a própria natureza fluida e adaptável da tradição oral. A antropologia nos permite vislumbrar como esses princípios eram vividos e internalizados pela sociedade mandinga, moldando suas intrincadas relações sociais e suas estruturas de poder.
No domínio do direito, a Carta de Kurukan Fuga apresenta um precedente para a compreensão da lenta e gradual evolução dos direitos humanos. Embora destituída da forma escrita das sociedades de Estado da modernidade, os princípios fundamentais que ela estabelece ecoam poderosamente os valores basilares que sustentam as declarações e convenções de direitos humanos contemporâneas. Mesmo em tópicos polêmicos, como discriminação de castas e escravidão, a Carta do Mandê já lidava com respeito pela vida humana, a busca pela justiça social, a proteção incisiva aos mais vulneráveis e a garantia da liberdade de expressão e organização política
O solene reconhecimento da Carta pela UNESCO em 2009 como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade é uma devida homenagem ao seu valor histórico e cultural.
SAIBA MAIS
Diakité, Drissa, and David C. Conrad.“The Mande Charter: A Model for African Governance?”African Studies Review, vol. 50, no. 2, 2007, pp. 27–44.
Jansen, Jan.“The Representation of Status in Mande: Did the Mali Empire Still Exist in the Nineteenth Century?”History in Africa, vol. 23, 1996, pp. 87–109.
Niane, Djibril Tamsir. Sundiata: An Epic of Old Mali. Translated by G.D. Pickett, Longman, 1965.
UNESCO.“Mandén Charter, proclaimed in Kurukan Fuga.”Intangible Cultural Heritage, 2009, https://ich.unesco.org/en/RL/manden-charter-proclaimed-in-kurukan-fuga-00290.
Zobel, Clemens.“The Mande Charter: Between Oral Tradition and Constitutional Innovation.”Stichproben: Vienna Journal of African Studies, no. 12, 2007, pp. 1–22.

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