A distinção entre democracia e república ocupa um lugar central na história das ideias políticas. Longe de serem conceitos equivalentes desde a Antiguidade, dēmokratia e res publica emergiram em contextos históricos distintos, responderam a problemas diferentes e carregaram, por séculos, valorações opostas. A convergência contemporânea entre ambos — cristalizada na noção de democracia liberal republicana — é o resultado de um longo processo de transformações conceituais, disputas ideológicas e reinterpretações institucionais. Compreender essa trajetória é essencial para entender tanto as promessas quanto as tensões internas das democracias modernas.

Na Grécia clássica, dēmokratia designava um regime específico, associado sobretudo à Atenas do século V a.C. O termo combinava dēmos (o corpo dos cidadãos) e kratos (poder), indicando de forma direta onde residia a soberania. Tratava-se de uma prática concreta de governo direto: a assembleia dos cidadãos decidia sobre leis, guerra e paz; cargos eram preenchidos majoritariamente por sorteio; tribunais populares exerciam funções judiciais amplas. Essa forma de governo estava ligada a ideais como isonomia (igualdade perante a lei) e isegoria (igualdade de palavra), celebrados no discurso fúnebre atribuído a Péricles (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, II.37).
Contudo, a dēmokratia foi objeto de forte ambivalência teórica. Platão a descreveu como um regime instável, dominado pelos apetites e pela ausência de hierarquia racional (República, VIII). Aristóteles, embora mais sistemático, classificou a democracia como uma forma desviada de governo, definida pelo interesse dos muitos pobres em detrimento do bem comum, distinguindo-a da politeia, uma constituição mista orientada pela lei (Política, III–IV). Assim, na Antiguidade, democracia não era um ideal normativo universal, mas uma forma específica, frequentemente suspeita, de organização política.
É de se considerar que a democracia grega era, na prática, uma oligarquia, já que mulheres, crianças, escravizados e estrangeiros — ou seja, a maioria da população — estava excluída do processo político.
Em Roma, o vocabulário e o horizonte conceitual eram outros. Res publica não indicava primariamente uma forma de governo, mas uma condição da vida política: a coisa pública, o domínio do comum em oposição à apropriação privada do poder. O seu contrário não era a aristocracia ou a democracia, mas o regnum ou a dominatio, formas de poder pessoal e arbitrário. A República Romana (509–27 a.C.) estruturou-se como uma constituição mista, combinando magistraturas com imperium, um Senado aristocrático dotado de auctoritas e assembleias populares com funções eleitorais e legislativas limitadas. Políbio analisou esse arranjo como a fonte da estabilidade e expansão romanas, precisamente por equilibrar elementos monárquicos, aristocráticos e democráticos (Histórias, VI).
Cícero, em De re publica, consolidou essa visão ao definir a república como uma associação fundada no consenso jurídico e orientada pelo bem comum. A liberdade romana (libertas) não se identificava com igualdade radical ou governo direto, mas com a proteção contra o arbítrio e a preservação da ordem legal. Para os romanos, portanto, a democracia ateniense era vista com desconfiança, associada à volatilidade e à ameaça à autoridade senatorial. Atenas podia ser uma dēmokratia, mas não uma res publica exemplar; Roma, inversamente, era a res publica por excelência sem jamais se definir como democracia.
Durante a Idade Média, a democracia praticamente desapareceu do vocabulário político positivo, sobrevivendo sobretudo nos comentários escolásticos a Aristóteles como sinônimo de governo degenerado ou de oclocracia. Já a noção de república foi preservada e transformada. Nas cidades italianas do Renascimento — Florença, Veneza, Gênova — res publica passou a designar comunidades políticas não monárquicas, frequentemente oligárquicas, organizadas por leis e magistraturas. Maquiavel, nos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, retomou o modelo romano para pensar a durabilidade dos regimes republicanos, defendendo que o conflito regulado entre povo e elites podia ser uma fonte de liberdade e vitalidade política.
O período moderno inicial marcou uma inflexão decisiva. As revoluções inglesas do século XVII produziram o vocabulário do commonwealth, usado de forma intercambiável com república para designar um regime sem rei. James Harrington, em Oceana (1656), elaborou uma teoria da república baseada no equilíbrio da propriedade e em instituições mistas. No século XVIII, Montesquieu forneceu a síntese conceitual que moldaria o pensamento constitucional moderno. Em De l’esprit des lois (1748), classificou os governos em repúblicas, monarquias e despotismos, subdividindo as repúblicas em democracias e aristocracias. A inovação crucial foi a defesa da representação como mecanismo que tornava possível uma república extensa, superando as limitações espaciais da democracia antiga.
Essa distinção foi central para o pensamento dos fundadores dos Estados Unidos. Para autores como Madison, Hamilton e Adams, “democracia” designava um regime direto, pequeno e instável, enquanto “república” significava um governo representativo fundado na soberania popular, mas mediado por instituições capazes de filtrar paixões e proteger direitos. No Federalist nº 10, Madison argumentou que democracias puras eram incapazes de controlar os efeitos das facções, ao passo que uma república extensa, baseada na representação, poderia diluí-las. No nº 39, definiu a república como um governo derivado do povo, administrado por representantes e livre de elementos hereditários. O resultado foi uma síntese inédita: uma res publica legitimada por princípios democráticos, mas estruturada segundo salvaguardas republicanas.
No século XIX, o sentido dos termos voltou a se deslocar. A Revolução Francesa e as lutas por sufrágio transformaram “democracia” em um ideal positivo e universalizante, associado à igualdade política e à soberania popular. “República”, por sua vez, passou a significar sobretudo a negação da monarquia hereditária, como no caso da Terceira República francesa. Karl Marx interveio nesse debate ao denunciar a república democrática burguesa como uma forma política que mascarava a dominação de classe, defendendo que a verdadeira democracia implicaria a superação do Estado (Manifesto Comunista, 1848).
No século XX, a ciência política consolidou a primazia analítica do conceito de democracia. Autores como Joseph Schumpeter propuseram definições procedimentais e minimalistas, centradas na competição eleitoral (Capitalism, Socialism and Democracy, 1942). “República” perdeu centralidade teórica, sobrevivendo como categoria jurídico-constitucional — um Estado com chefe de governo não hereditário — ou como referência histórica. Paralelamente, “democracia” expandiu-se em múltiplas qualificações: liberal, social, deliberativa, participativa. Ainda assim, o legado republicano persistiu nas preocupações com o constitucionalismo, a separação de poderes e a contenção da tirania da maioria, temas já formulados por Tocqueville no século XIX.
No pensamento político contemporâneo, a relação entre democracia e república é melhor compreendida como uma inclusão assimétrica e histórica. Democracia define a fonte de legitimidade: o povo como soberano. República designa o arcabouço institucional que organiza, limita e estabiliza esse poder por meio da lei, da representação e de mecanismos contramajoritários. As democracias liberais atuais são, nesse sentido, repúblicas democráticas: regimes que combinam o princípio da dēmokratia com a arquitetura da res publica. A tensão entre vontade popular e ordem institucional, longe de resolvida, continua a estruturar o debate político moderno, reiterando que a história desses conceitos não é apenas um capítulo do passado, mas um problema permanente da teoria e da prática políticas.
SAIBA MAIS
Adams, John. A Defence of the Constitutions of Government of the United States of America. 1787.
Aristóteles. Política.
Cicero. De re publica.
Hamilton, Alexander, James Madison, and John Jay. The Federalist Papers. 1787–1788.
Harrington, James. The Commonwealth of Oceana. 1656.
Maquiavel, Nicolau. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.
Marx, Karl, and Friedrich Engels. Manifesto of the Communist Party. 1848.
Montesquieu, Charles de Secondat. De l’esprit des lois. 1748.
Políbio. Histórias.
Schumpeter, Joseph A. Capitalism, Socialism and Democracy. New York: Harper & Brothers, 1942.
Tocqueville, Alexis de. De la démocratie en Amérique. 1835–1840.
Tucídides. História da Guerra do Peloponeso.
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