Anício Mânlio Severino Boécio, nascido em Roma por volta de 480 d.C. numa família patrícia, destacou-se como um dos últimos grandes intelectuais do mundo romano clássico. Polímata, com contribuições em matemática, música e filosofia, serviu como conselheiro do rei ostrogodo Teodorico, o Grande. Contudo, sua trajetória de sucesso foi tragicamente interrompida quando, suspeito de traição em favor do Império Bizantino, foi aprisionado. Foi na prisão de Ticinum (atual Pavia), aguardando a execução, que Boécio escreveu sua obra-prima, “A Consolação da Filosofia” (De consolatione philosophiae), um texto que se tornaria um dos pilares do pensamento medieval e renascentista, traduzido por figuras como Alfredo, o Grande, e Geoffrey Chaucer, e amado por gerações de eruditos europeus.
“A Consolação da Filosofia” é um diálogo pungente e profundo entre o próprio Boécio, mergulhado em desespero e lamentando sua sorte, e uma figura alegórica majestosa, a Senhora Filosofia. A obra inicia-se com Boécio em sua cela, “ruminando sobre minha tristeza e velhice”, compondo versos sobre seus infortúnios. É neste momento de profunda angústia que a Filosofia lhe aparece, descrita como uma mulher de semblante venerável, olhos flamejantes e estatura variável, ora de altura comum, ora perfurando os céus. Suas vestes, de tecido imperecível, simbolizavam a vida prática (a letra grega Pi na borda inferior) e a vida teórica (a letra Teta na borda superior), interligadas por degraus. A Filosofia, sua “ama” desde a juventude, repreende as musas da poesia por apenas alimentarem sua dor e se apresenta como a verdadeira médica para sua alma enferma.
O diálogo avança com a Filosofia buscando curar Boécio de sua aflição, começando por desconstruir sua crença na estabilidade da Fortuna. Ela argumenta que a “deusa cega”, a Fortuna, é inerentemente mutável e inconstante. Lamentar sua mudança de face é não compreender sua verdadeira natureza. Os dons da Fortuna – riquezas, honrarias, poder e fama – são, na visão da Filosofia, vãos e transitórios. O dinheiro só tem valor quando distribuído e frequentemente resulta no empobrecimento de outros; o poder e os altos cargos muitas vezes caem nas mãos dos piores homens, tornando-se instrumentos de tirania e maldade (“acaso um Etna já causou tanto dano?”). A glória terrena, por sua vez, é limitada a um pequeno canto de um mundo já insignificante em comparação com a vastidão dos céus, e de nada serve após a morte do corpo. Boécio, que almejava oportunidades para exercer a virtude na vida pública, é levado a reconhecer a superficialidade dessas ambições mundanas.
A Filosofia então conduz Boécio à busca pela verdadeira felicidade. Se os bens terrenos são imperfeitos e incapazes de satisfazer plenamente, a verdadeira felicidade deve ser um bem perfeito, simples e indivisível. Este bem supremo, argumenta ela, é a própria união com Deus, a Divindade suprema. “A verdadeira felicidade”, afirma, “deve residir na Divindade suprema”. Deus é a fonte e a soma de tudo o que é desejável, e a essência do bem absoluto é idêntica à da felicidade. Assim, buscar a verdadeira felicidade é buscar a Deus.
Uma das maiores angústias de Boécio, e um ponto crucial do diálogo, é o problema do mal: como pode o mal existir e, pior, prosperar impunemente num universo governado por um Deus bom, enquanto os virtuosos sofrem? A Filosofia responde com uma das afirmações centrais do livro: “pela vontade de Deus, os bons são sempre fortes, os maus sempre fracos e impotentes; os vícios nunca ficam impunes, nem as virtudes sem recompensa”. A força dos bons reside em sua busca pelo verdadeiro bem (Deus e a virtude), que é a verdadeira felicidade. Os maus, por outro lado, são enfraquecidos e degradados por seus próprios vícios, que constituem sua própria punição, rebaixando-os abaixo da condição humana. Mesmo que pareça que os bons sofrem e os maus triunfam, isso se insere num mistério maior da ordem divina. A Providência, argumenta a Filosofia, opera de maneiras que transcendem a compreensão humana, e até mesmo os males aparentes podem ser instrumentos para um bem maior ou parte de uma ordem mais ampla e justa, ainda que inescrutável.
Finalmente, Boécio levanta a complexa questão da compatibilidade entre o livre arbítrio humano e a presciência divina. Se Deus tudo prevê, como podem as ações humanas serem verdadeiramente livres? A Filosofia assegura que o livre arbítrio é real e essencial à natureza racional do homem. Não há “acaso” no sentido de eventos sem causa; tudo se desenrola dentro de uma cadeia de causalidade ordenada por Deus. A presciência divina, explica ela, não é uma predeterminação que anula a liberdade, mas uma visão eterna e simultânea de todos os eventos, incluindo as escolhas livres dos seres humanos. Deus, em Sua eternidade, vê as ações futuras como se estivessem presentes, sem impor-lhes necessidade. Portanto, a responsabilidade moral, as recompensas e punições, e mesmo a eficácia das preces e esperanças, são mantidas. A obra conclui com um chamado à virtude: “Resisti ao vício, praticai a virtude, elevai vossas almas a justas esperanças, oferecei humildes preces ao Céu.”
“A Consolação da Filosofia” é mais do que o lamento de um homem injustiçado; é uma profunda meditação sobre a natureza da felicidade, a justiça, o destino e a liberdade, tecida com elementos da filosofia platônica, aristotélica e estoica, e imbuída de um monoteísmo que ressoou profundamente na Idade Média cristã. A coragem e a clareza filosófica com que Boécio enfrentou a morte, culminando em sua execução por tortura por volta de 524 d.C., apenas ampliaram o impacto de sua obra, que se tornou um farol de sabedoria e consolo por mais de um milênio, solidificando seu legado como uma ponte essencial entre o mundo clássico e a era medieval.

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