Imagine que você esteja milênios atrás nos antigos festivais nas cavernas decoradas com exuberantes pinturas rupestres de Lascaux e Altamira. Fumaça, cores, fogo, escuridão, música, desenhos psicodélicos… Qual era seu significado? Qual o propósito? Eram eventos religiosos, de diversão, cura, mágica, ritos de passagens? As pessoas entravam em transes? E o quanto desses rituais persistem em sociedades contemporâneas?
Talvez um pouco de tudo isso. Os registros arqueológicos são inconclusivos, mas o suficiente para tentar uma hipótese de combinação de dança, cura ritual, transe e religião.
Algumas considerações
Quase todas grandes religiões apresentam danças sagradas: o girar do dervishe muçulmano, a dança hassídica no judaísmo, o dançar no Espírito do pentecostalismo cristão. Enquanto a aceitação da dança no culto das religiões abraâmicas é controverso nessas comunidades, outras religiões como candomblé, Dança do Espírito de Wovoka, a Dança de São Gonçalo, o balé hindu Bharata Natyam possuem performances corporais inseparáveis da religião.
Grosso modo, a religião xamânica consiste em entrar em trance e manipular uma realidade espiritual para benefício da realidade deste mundo material. Tanto o xamanismo siberiano quanto clubes noturnos apelam para estados alterados de consciências. O uso de jogo de luz/escuridão, música com intensas batidas rítmicas e às vezes drogas enteogênicas fazem parte desses rituais.
A crença em espíritos presentes em rituais da umbanda, as manias dançantes (choreomaniacs) europeias, o culto dos shakers, o tarantismo e o zar sustentam práticas de incorporação e exorcismo.
Uma forma secularizada de xamanismo é o Buning Man, um festival que ocorre anualmente no deserto do Nevada. Nesse evento organizado por uma empresa, a arte, as performances e música (e drogas lícitas ou nem tanto) congregam quase 70 mil pessoas para uma rave. O clímax é queimar uma efígie de madeira gigantesca. Nesses eventos, há vários relatos de experiências numinosas.
Há também uma sensualidade nesses rituais integrados. É bem descrita nas Bacantes peça de Eurípedes na qual em um culto dionisíaco, as mulheres saíam a noite dançando, bebendo, atacando e comendo ovelhas vivas — descrição impressionante o suficiente para ser aludida na Bíblia na narrativa paulina em Atos dos Apóstolos (cf. Atos 26:14 e Bacantes 794-795).
Examinando os cultos zar da Etiópia e Irã e comparando com a tarantella italiana faz-me crer na continuidade desses rituais com um propósito terapêutico. Em ambos cultos mulheres são possuídas e submetem à rituais de envolvendo danças para (1) exorcizar um mal presente nelas ou algum parente; (2) entrar em um plano espiritual distinto; e (3) receber poder de uma divindade benéfica contra o mal.
Alguns estudos da eficácia desses rituais com fins terapêuticos demonstram uma íntima correlação da prática com uma interpretação religiosa. Ainda falta um estudo comparativo compreensivo sobre estes diversos rituais, embora sejam pioneiros os trabalhos da coreógrafa Gabrielle Roth (1941–2012).
Roth combina informações do xamanismo, estados alterados de consciência e educação corporal para a prática dos 5Rhythms. É um misto de ritual secularizado, terapia e dança lúdica que pressupõe a correlação entre cinco aspectos do sujeito com diferentes rítmos, emoções, estágios da vida e modos de percepção. Ainda que muitos das afirmações de Roth continuam controvérsas, é inegável sua contribuição para a redescoberta da corporalidade e movimento.
Amostras etnográficas
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