Boléro, de Maurice Ravel (1875–1937), é uma dessas músicas que te supreende sem saber o porquê. Composto em 1928, a pedido da bailarina Ida Rubinstein, o que começou como um balé modesto tornou-se um dos maiores enigmas da música orquestral. Uma peça minimalista e obsessiva que consegue ser, ao mesmo tempo, despretensiosa e avassaladora.
A estrutura de Boléro é simples: uma batida ininterrupta na percussão, mecânica e incansável, marcando o tempo de ponta a ponta. Sobre ela, duas melodias—simples, quase singelas—se repetem 18 vezes. Mas o que transforma esse esqueleto rudimentar em algo monumental é o gênio de Ravel na orquestração. Cada repetição das melodias acresce um instrumento e migra a outro: flauta, clarinete, saxofone, oboé d’amore, trompete piccolo. Cada timbre adiciona uma nova cor, um novo sopro de vida ao tema que, sozinho, seria banal.
Enquanto o ritmo permanece constante, o volume cresce. Devagar, imperceptível no início, até atingir um clímax estrondoso. O tom é teimosamente mantido em dó maior, o tom mais basilar possível, preso como quem se recusa a mudar. Mas, quase no fim, Ravel faz um desvio: por oito compassos, emerge um mi maior brilhante, uma fresta de luz, antes que a música volte, finalmente, para o dó inicial, explodindo em uma catarse de metais, glissandos de trombones e percussões esmagadoras.
A ironia de tudo isso? O próprio Ravel considerava Boléro pouco mais que um “experimento”, algo “sem música”. Escreveu-o como um teste de repetição, um exercício de forma e economia criativa. E, no entanto, esse “trabalho sem alma” é hoje seu mais famoso, talvez porque sua simplicidade brutal tenha algo de universal, algo que prende o ouvinte, quase contra a vontade.

Maurice Ravel nasceu em Ciboure, uma cidade basca, filho de pai suíço e mãe basca. Essa mistura de heranças forjou sua identidade artística. Embora suas raízes fossem diversas, a música de Ravel é indiscutivelmente francesa: clara, elegante, precisa. Um mestre da reinvenção, ele olhava para as formas clássicas do passado, mas com olhos voltados para o futuro, recriando-as com uma modernidade sutil, quase mágica.
Ravel tinha fascínio pelo rigor e pela técnica. Inspirava-se em fontes improváveis, como Edgar Allan Poe, cujo senso de proporção e economia marcou profundamente o compositor. Essa obsessão pela perfeição é evidente em toda sua obra: dos arabescos delicados de Pavane pour une infante défunte ao brilho jazzístico do Concerto para Piano em Sol Maior.
Embora sua música pareça inovadora, Ravel não era um revolucionário, como Stravinsky ou Schoenberg. Ele preferia caminhar pelo terreno da reinvenção, reinterpretando tradições com uma sofisticação que soava, ao mesmo tempo, familiar e nova. Obras como Daphnis et Chloé e Rhapsodie Espagnole exemplificam sua habilidade de pintar com sons, de transformar orquestras em paletas infinitas de cores.
E, no entanto, foi com Boléro que ele entrou para a eternidade. Um trabalho que ele mesmo via como “um trapo orquestral”, algo sem substância, mas que, em sua aparente simplicidade, revelou-se um monumento à arte da repetição. “Escrevi apenas uma obra-prima”, confessou a um amigo. “Infelizmente, ela não tem música.” Talvez tivesse razão. Ou talvez Boléro nos lembre que, mesmo o mais simples dos gestos, quando feito com perfeição, pode ressoar para sempre.

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