Anders Kempe: o soldado pacifista

Longe do lar na idílica Suécia, o artilheiro sentia cheiro de sangue, pólvora e madeira queimada. Anders Kempe (1622-1689) iniciou sua carreira como soldado, imerso nos horrores da Guerra dos Trinta Anos. Em um campo de batalha coberto pela neve, entre cadáveres calados e gemidos de dor, o soldado experimentou a primeira de suas visões. Ele viu, ou talvez imaginou, uma figura radiante — uma mulher ou um anjo — que, com gestos silenciosos, suplicava: “Deixa de matar. Onde há morte, faz surgir a vida.” Essa visão o transformou. Naquela noite em 1664, jogou seu uniforme na lama, renunciando à violência, mas descobriu que os grilhões do mundo não se rompem facilmente. Ao invés de matar, tornar-se-ia um salvador de vidas, um médico.

No mesmo ano saía na tolerante Amsterdã seu manifesto, Perspicillum bellicum, em defesa da paz.

De volta à Suécia, seu pacifismo foi recebido com desconfiança, como se fosse uma ameaça às estruturas rígidas da fé e do poder. O controle religioso luterano na Suécia não tolerava desvios. Suspeito de heresia, Kempe foi obrigado a deixar sua terra natal. Começou então sua vida errante, cruzando fronteiras e enfrentando perseguições. Em Trondheim, na Noruega, trabalhou como médico e alquimista, mas suas ideias consideradas heréticas provocaram sua expulsão. Na Alemanha, encontrou refúgio temporário em cidades como Hamburgo e Altona, onde continuou a escrever, praticar medicina e explorar os mistérios do universo.

Kempe era um alquimista de ideias. Suas palavras, impregnadas de humor e provocação, desafiavam tanto os eruditos quanto os dogmas. Em Die Sprachen des Paradieses, ele escreveu: “No Éden, Deus falava sueco, a língua da criação. Adão, em sua simplicidade pragmática, usava o dinamarquês. E a serpente? É claro que falava francês.” Embora fosse uma sátira, carregava um toque de verdade: para Kempe, as disputas religiosas e linguísticas eram tão artificiais quanto as guerras que destruíam a Europa.

Mesmo exilado, Anders Kempe encontrou aliados e inspirações. Em Hamburgo, estabeleceu contato com Manuel Teixeira, um judeu sefardita da nação portuguesa. O hábil Teixeira usava da diplomacia para garantir a sobrevivência de seu povo em meio hostil. Kempe começou a entender os judeus sob seus próprios pontos de vista. Consequentemente, aderiu a crença no universalismo: a ideia de que todas as nações e credos se uniriam após o apocalipse, em uma harmonia espiritual. Essa visão foi articulada em sua obra Israels erfreuliche Botschaft, onde Jerusalém não era uma cidade, mas um estado de alma — um lugar de reconciliação, onde línguas e religiões se fundiriam em uma luz eterna.

Mas Kempe era mais que um mero visionário. Profundamente humano, suas ideias misturavam misticismo, ciência e uma inquietante lucidez. Ele via o mundo como um grande laboratório, onde o material e o espiritual se entrelaçavam em busca de um sentido mais profundo. No laboratório do temperamental militar e alquimista Matthias Drakenstierna, em sua juventude, aprendeu que a alquimia verdadeira não era a transformação de metais, mas do espírito. Lá, entre vapores iridescentes e cristais sobrenaturais, começou a vislumbrar que o divino estava em cada detalhe do universo.

Anders Kempe morreu sozinho, em uma casa escura nas brumas de Altona. Ao lado de seu leito, provavelmente estavam frascos vazios, livros proibidos e seus instrumentos médicos.

Apesar de sua biografia restar como uma nota de rodapé. Foi ele um profeta? Um herege? Um sonhador à frente de seu tempo? Anders Kempe, com suas ideias heréticas e sua resistência pacífica, foi um testemunho de que, mesmo na escuridão, há aqueles que ousam vislumbrar a luz.

SAIBA MAIS
Ambjörnsson, Ronny. “Krig och fred: Om en glömd pacifist från de stora krigens tid.” Tänka, tycka, tro, Ordfronts förlag, 1993.

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