Shusaku Endo: O Silêncio

No tumultuado Japão do século XVII, contrastam o fervor da perseguição e o peso do silêncio dos oprimidos. O romance O Silêncio de Shusaku Endo entrelaça fé, dúvida, arrependimento, sacrifício e a graça quando Deus parece estar em silêncio. Em um aviso amistoso ao leitor, esta resenha contém revelações acerca do enredo.

O romance e seu enredo

O romance começa quando dois padres jesuítas, Sebastião Rodrigues e Francisco Garrpe, chegam secretamente ao Japão. No período do xogunato Tokugawa o cristianismo fora banido. Os católicos japoneses enfrentaram uma perseguição sangrenta e em massa no século XVII, enquanto muitos cristãos ocultam sua fé. A dupla está atrás do mentor, padre Cristóvão Ferreira. Há rumores de que o missionário tenha apostatado da fé.

Rodrigues e Garrpe encontram-se com cristãos secretos. Os jesuítas testemunham as dificuldades e o sofrimento suportados por estes crentes, que são forçados a renunciar à sua fé ou a enfrentar a tortura e a morte. Os padres decidem continuar a sua missão apesar dos perigos.

Eventualmente, Rodrigues e Garrpe são traídos por um cristão japonês chamado Kichijiro, que já havia renunciado à sua fé, mas busca redenção. Ambos são capturados pelas autoridades japonesas e presos, juntamente com outros cristãos. O perseguidor Inoue Masashige é criativo para fazer dobrar suas vítimas.

No cativeiro, Rodrigues enfrenta intensos dilemas espirituais e morais. O padre enfrenta sentimentos de culpa, dúvida e traição ao testemunhar o sofrimento dos cristãos japoneses e é pressionado a renunciar à sua própria fé ao pisar em um fumie, uma imagem de Cristo.

Garrpe é martirizado. Rodrigues tem de escolher entre renunciar à sua fé para salvar a vida de outros cristãos ou permanecer firme nas suas crenças e enfrentar o martírio.

O romance termina com um epílogo ambientado vários anos depois, revelando as consequências das escolhas de Rodrigues. Assimilado ao mundo japonês, o ex-padre convive com a angústia, dúvida e fé.

O Silêncio

Temas em o Silêncio

Ao longo do romance, Rodrigues vivencia o que percebe como o silêncio de Deus diante do sofrimento humano. O padre luta para conciliar a sua compreensão do amor e da misericórdia de Deus com a aparente ausência de intervenção divina no meio da perseguição.

Mesmo no silêncio de Deus, há manifestação da graça. Por exemplo, o personagem Kichijiro alterna falhas na fé e as repetidas traições com arrependimento e pesar. Ele age no erro e espera a graça. Esse paradoxo reflete a própria busca de Rodrigues pela salvação. Há uma humanização da condição humana de pecado e do sofrimento que afetam as pessoas imperfeitas e frágeis. Contudo, enquanto houver vida é possível um vislumbre de esperança num mundo envolto em trevas. A redenção não se extingue.

O conceito de graça não é novo no contexto japonês. No budismo japonês graça é notável na tradição Jodo Shinshu, fundada pelo monge do século XII, Shinran. Esta tradição enfatiza a ideia de “Outro Poder” ou tariki, que é uma forma de compaixão e graça imerecida e incondicional do Buda. Acredita-se que abrange todos os indivíduos, independentemente do seu avanço espiritual ou posição moral. Este conceito contrasta com a ênfase tradicional no esforço próprio e na autorrealização no Budismo. Tal conceito é semelhante ao conceito cristão de influência divina que opera nos humanos para inspirar impulsos virtuosos e fornecer força para suportar provações.

O romance explora a ideia de que a graça nem sempre se manifesta na intervenção divina explícita, mas também pode ser encontrada em meio ao silêncio e ao sofrimento. Esta interpretação da graça como a permeação da alma com o amor divino, mesmo na ausência de aparente comunicação divina.

História editoral e o autor

Endō iniciou a escrever o livro em 1956, inspirando-se nas tradições orais e lendas da história de cristãos japoneses que sofreram perseguições durante o século XVII. Alimentado por suas próprias experiências como católico no Japão e na França, redigiu meticulosamente o romance com camadas de complexidade e introspecção.

Publicou originalmente em japonês em 1966, sendo rapidamente aclamada. Rendeu-lhe o Prêmio Tanizaki. Foi traduzido para o inglês e outras línguas, acendendo discussões teológicas. Seria transportado às telas por Martin Scorsese. (No momento, não vi o filme, mas parece ter sido feito com esmero). O meticoloso Endō continuou a refinar o romance ao longo dos anos, aprimorando sua caracterização e concluindo com revisões e adaptações sutis.

Shūsaku Endō (1923-1996) nasceu em Tóquio, em um ambiente predominantemente budista. Converteu-se ao catolicismo romano aos 11 anos de idade. Viria estudar literatura francesa na Universidade Keio e na Universidade de Lyon, na França. Autor de mais de 175 obras, escreveu os romances O Silêncio, O samurai, Quando assobio, nas quais delineia uma interseção dos pensamentos japonês e ocidental.

SAIBA MAIS

Buri, Fritz. “The Concept of Grace in Paul, Shinran, and Luther.” The Eastern Buddhist 9.2 (1976): 21-42.

Shusaku Endo. O Silêncio. Tradução Edyla Mangabeira Unger. Civilização Brasileira: Rio de Janeio, 1979.

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