Biopolítica e Necropolítica

Em um mundo onde os corpos são constantemente vigiados, moldados e, em muitos casos, descartados, o poder se torna visceral: o poder se inscreve na carne e redefine as fronteiras do que é possível. Achille Mbembe e Paul B. Preciado, dois filósofos com pensamentos, exploram os mecanismos de controle que atravessam a biologia, a sexualidade e a própria sobrevivência.

Embora venham de contextos e tradições teóricas distintas — Mbembe, um filósofo e cientista político camaronês, e Preciado, um filósofo espanhol — ambos oferecem críticas contundentes ao funcionamento do poder na sociedade contemporânea. Suas abordagens, no entanto, revelam tanto convergências quanto diferenças marcantes.

Mbembe: A necropolítica e os legados do colonialismo

Achille Mbembe propõe o conceito de necropolítica, que ele apresenta como uma extensão crítica da biopolítica de Michel Foucault. Enquanto Foucault descreve como o poder moderno regula a vida — controlando populações e maximizando sua produtividade —, Mbembe destaca que, em muitos contextos, o poder se exerce por meio da morte. Na necropolítica, certos corpos e populações são considerados descartáveis, seja através de genocídios, guerras, ou condições sociais que os condenam à sobrevivência mínima, transformando-os em “mortos-vivos.”

Mbembe desenvolve sua análise a partir do colonialismo e da escravidão, mostrando como esses sistemas basearam-se na desumanização de populações inteiras. Os mecanismos de controle sobre a vida e a morte que surgiram durante a era colonial continuam a operar hoje, particularmente em relação aos corpos negros e outros grupos marginalizados. Suas obras, como Necropolitics e On the Postcolony (2001), escancaram as dinâmicas de violência e exclusão que moldam o mundo pós-colonial, destacando a persistência do racismo e do imperialismo na contemporaneidade.

Além disso, Mbembe explora a subjetividade africana e o impacto do colonialismo na construção das identidades no continente. Rejeita visões essencialistas de “África”, defendendo um reconhecimento da diversidade e da complexidade das experiências africanas. Sua incursão no afrofuturismo, por exemplo, busca imaginar futuros alternativos para o continente, desafiando narrativas de catástrofe que frequentemente o definem.

Preciado: A resistência ao regime farmacopornográfico

Paul B. Preciado, por outro lado, centra sua crítica naquilo que ele denomina “regime farmacopornográfico.” Esse conceito descreve como as indústrias farmacêutica e pornográfica moldam corpos e desejos na sociedade contemporânea, reforçando normas rígidas de gênero e sexualidade. Para Preciado, o controle dos corpos não ocorre apenas através de leis ou instituições, mas por meio de tecnologias, medicamentos e representações midiáticas que definem o que é “normal” ou “desejável.”

Preciado exemplifica essa crítica com suas próprias experiências, como narrado em Testo Junkie. Ao se autoadministrar testosterona fora do controle médico, ele transforma seu corpo em um campo de experimentação política, desafiando as normas de gênero e as estruturas de poder que regulam a transição de corpos trans. Essa prática, para ele, é uma forma de resistência contra o sistema que patologiza corpos desviantes e marginaliza identidades não conformes.

O trabalho de Preciado também se alinha a uma análise biopolítica, mas com um foco particular no corpo como espaço de intervenção tecnológica. Ele introduz o conceito de somatécnicas para descrever como técnicas e tecnologias moldam corpos e subjetividades, desde cirurgias e hormônios até práticas culturais que impõem normas corporais. Como Mbembe, Preciado também explora o caráter letal do poder moderno, analisando como certos corpos são descartados ou considerados indesejáveis.

Convergências e divergências: o Corpo como território de poder

Apesar de suas diferenças de foco, Mbembe e Preciado compartilham um ponto central: ambos entendem o corpo como um território onde o poder é exercido e resistido. Para Mbembe, o corpo negro carrega as marcas do colonialismo, constantemente ameaçado pela violência e pela exclusão. Para Preciado, o corpo trans é um espaço de luta contra as normas biopolíticas que regulam gênero e sexualidade.

Ambos também vão além de Foucault ao destacar as dimensões mais brutais do poder. Enquanto Foucault se concentra na regulação e otimização da vida, Mbembe e Preciado enfatizam o poder de decidir quem vive e quem morre, seja nas periferias globais ou nos espaços de controle biomédico do Ocidente.

As diferenças entre Mbembe e Preciado refletem seus contextos históricos e geográficos. Mbembe está profundamente enraizado na história do colonialismo e na experiência africana, analisando como a necropolítica opera em espaços pós-coloniais. Preciado, por sua vez, foca nas dinâmicas de poder em sociedades ocidentais contemporâneas, com ênfase no gênero, na sexualidade e nas tecnologias biomédicas.

Além disso, enquanto Mbembe busca imaginar futuros alternativos para o continente africano e sua diáspora, Preciado oferece uma crítica do presente, desafiando as categorias que moldam nossas vidas hoje. Ambos são visionários, mas sua visão do futuro emerge de lugares distintos: Mbembe, das ruínas do colonialismo; Preciado, das fissuras do regime farmacopornográfico.

Um diálogo necessário

Colocar Achille Mbembe e Paul B. Preciado em diálogo revela as complexidades das formas modernas de poder. Eles nos lembram que, em um mundo onde corpos continuam a ser controlados, descartados e regulados, a resistência é possível — seja através de práticas de afirmação da vida, como a autogestão corporal de Preciado, ou pela reimaginação de subjetividades, como propõe Mbembe.

Com as transformações sociais e tecnológicas vindas da pandemia, vimos o exercício de poder da necropolítica. Conflitos oriundos políticas populistas democidas e interesses financeiros atrelados às indústrias de saúde revelam o quanto a vida e o corpo humano tornou-se uma mercadoria.

Ambos desafiam as narrativas dominantes que naturalizam a desigualdade e a opressão, oferecendo ferramentas para pensar um mundo mais inclusivo e justo. Seja no sul global ou nos espaços urbanos do Ocidente, suas análises ecoam como convites urgentes para questionar, resistir e criar.

SAIBA MAIS

Mbembe, Achille. On the Postcolony. University of California Press, 2001.

Preciado, Paul B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2023.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Um site WordPress.com.

Acima ↑