Crenshaw: interseccionalidade e as múltiplas faces da discriminação

Kimberlé Crenshaw (Canton, Ohio, 1959) é uma jurista, teórica crítica da raça e pensadora feminista norte-americana. Seu trabalho explica com lucidez como categorias identitárias como raça, gênero e classe se sobrepõem. Essa sobreposição de categoria gera formas únicas e complexas de discriminação e privilégio, conceito que denominou interseccionalidade.

A pensadora formada em governo pela Universidade Cornell (1981), Kimberlé Crenshaw obteve seu Juris Doctor pela Harvard Law School (1984) e um LL.M. (Mestrado em Direito) pela University of Wisconsin Law School (1985), onde também foi assistente do professor William H. Whitford. Desde 1986, leciona na UCLA School of Law e, posteriormente, também na Columbia Law School. Crenshaw ganhou notoriedade em círculos de estudos jurídicos críticos e da teoria crítica da raça a partir do final da década de 1980. Eram tempos de intenso debate sobre as limitações das abordagens tradicionais do direito civil para lidar com as desigualdades persistentes nos Estados Unidos.

Interseccionalidade

O conceito de interseccionalidade, central no pensamento de Crenshaw, foi introduzido formalmente em seu artigo “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics” (1989). Nele, a autora analisou como as experiências de mulheres negras são frequentemente obscurecidas tanto nas teorias feministas, que tendem a focar nas experiências de mulheres brancas, quanto nas teorias antirracistas, que muitas vezes se concentram nas experiências de homens negros. A interseccionalidade propõe que opressões como racismo e sexismo não atuam de forma isolada, mas se cruzam e se reforçam mutuamente, criando vulnerabilidades e formas de discriminação específicas para mulheres negras, que não podem ser compreendidas olhando-se apenas para a raça ou apenas para o gênero. Crenshaw expandiu esta análise no artigo “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color” (1991), onde aplicou o conceito à violência doméstica e sexual contra mulheres não-brancas, argumentando que as respostas institucionais muitas vezes falham em reconhecer suas necessidades particulares devido à intersecção de fatores raciais, de gênero, de classe e, por vezes, de status imigratório.

Teoria Crítica da Raça (CRT) e outros conceitos de Crenshaw

Crenshaw é uma das fundadoras e principais expoentes da Teoria Crítica da Raça (Critical Race Theory, singla em inglês CRT). Este movimento intelectual surgiu nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980 para examinar como a raça e o racismo foram e continuam a ser construções sociais e legais que moldam o sistema de justiça e outras instituições sociais, perpetuando a desigualdade racial. Crenshaw contribuiu para desenvolver conceitos-chave da CRT, como a ideia de que o racismo não é meramente um produto de preconceitos individuais, mas um fenômeno estrutural, embutido nas leis, políticas e práticas institucionais. A CRT também enfatiza a importância de narrativas e contranarrativas, dando voz às experiências de grupos racialmente marginalizados para desafiar as perspectivas dominantes.

Em 2014, a African American Policy Forum (AAPF), cofundada e dirigida por Crenshaw, lançou a campanha #SayHerName. Esta iniciativa visa dar visibilidade aos nomes e histórias de mulheres e meninas negras vítimas de violência policial e estatal nos Estados Unidos, cujas experiências são frequentemente negligenciadas nos discursos públicos e no ativismo sobre brutalidade policial, que tendem a focar predominantemente em vítimas masculinas negras. A campanha argumenta que a falta de reconhecimento dessas vítimas reflete uma forma de apagamento interseccional.

Crenshaw critica veementemente as abordagens jurídicas e políticas baseadas na “cegueira racial” (colorblindness), ou seja, a ideia de que não se deve levar em conta a raça para promover a igualdade. Argumenta que ignorar a raça em contextos onde o racismo sistêmico persiste apenas serve para perpetuar as desigualdades existentes. Em vez disso, defende a necessidade de políticas de identidade conscientes da raça e de outras categorias de opressão como ferramentas para diagnosticar e combater as desigualdades estruturais. Para Crenshaw, reconhecer as identidades e as experiências específicas de grupos marginalizados não é divisivo, mas um passo essencial para alcançar uma justiça substantiva.

Dentro da teoria jurídica feminista, o trabalho de Crenshaw desafia as vertentes que tendem a universalizar a “experiência da mulher” sem considerar as diferenças significativas impostas pela raça, classe, sexualidade e outras identidades. A pensadora advoga por um feminismo interseccional, que reconheça a diversidade de experiências das mulheres e as formas complexas como diferentes sistemas de opressão interagem, moldando suas vidas e suas lutas por igualdade.

O conceito de interseccionalidade, cunhado por Kimberlé Crenshaw, transcendeu o campo jurídico e acadêmico. A interseccionalidade tornous-se uma ferramenta analítica base em estudos de gênero, estudos raciais, sociologia, e diversas outras áreas das ciências humanas e sociais, bem como no ativismo por justiça social em todo o mundo. A sua obra influencia debates contemporâneos sobre violência policial, discriminação no mercado de trabalho, direitos LGBTQIA+, políticas públicas e a representação de grupos marginalizados. Embora a interseccionalidade e a Teoria Crítica da Raça tenham sido alvo de críticas, especialmente por setores conservadores que as acusam de promover divisão, o trabalho de Crenshaw indubitavelmente tem o mérito de desvelar vieses sistêmicos no direito e na cultura e de aprofundar a compreensão das dinâmicas de poder, opressão e privilégio nas sociedades contemporâneas.

OBRAS PRINCIPAIS

CRENSHAW, Kimberlé. “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics” (1989). University of Chicago Legal Forum.

CRENSHAW, Kimberlé. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color” (1991). Stanford Law Review.

CRENSHAW, Kimberlé. Critical Race Theory: The Key Writings That Formed the Movement (1995, coeditora com Neil Gotanda, Gary Peller e Kendall Thomas). New York: The New Press.

CRENSHAW, Kimberlé. #SayHerName: Resisting Police Brutality Against Black Women (2015, relatório da African American Policy Forum e do Center for Intersectionality and Social Policy Studies, Columbia University).

CRENSHAW, Kimberlé W. “A intersecionalidade da discriminação racial e de gênero”. Cruzamento de fronteiras disciplinares e políticas. Tradução de Tais Fernanda Blauth. Cruz Alta: Ilustração, 2021.

CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. (Tradução de “Mapping the Margins”).

SAIBA MAIS

  • African American Policy Forum (AAPF), cofundado e dirigido por Kimberlé Crenshaw. Website: aapf.org.
  • Center for Intersectionality and Social Policy Studies, Columbia Law School. Website: intersectionality.law.columbia.edu.
  • AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Coleção Feminismos Plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

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