Toda origem é uma ficção necessária. Não porque seja falsa, mas porque só pode ser contada depois — quando o acaso já se cristalizou em destino e a violência do movimento se transformou em genealogia. A história dos povos húngaros pertence a esse gênero particular de narrativas em que a posteridade confere coerência ao que, no momento vivido, foi apenas deslocamento, aliança provisória, ruptura e esquecimento.
Na planície que se estende entre o Danúbio e os confins da estepe pôntico-caspiana, sucederam-se, ao longo de quase um milênio, povos que raramente deixaram autobiografias. O que permanece são nomes — hunos, ávaros, búlgaros, magiares, cumanos — e, por trás deles, confederações instáveis, línguas que se perderam, identidades que se sobrepuseram sem jamais se anularem por completo. Cada grupo acreditou chegar por último; nenhum foi o último.
A Hungria medieval herdaria esse passado como se herda um manuscrito reescrito muitas vezes: um palimpsesto no qual ainda se percebem, sob o texto dominante, vestígios de escritas anteriores. O cavaleiro arqueiro cita, o catáfrato sármata, o chefe túrquico do khaganato, o príncipe magiar cristianizado — todos coexistem, não no tempo, mas na memória histórica que os reorganiza e lhes atribui sentido.
Este ensaio não busca uma origem única nem uma linha contínua. Busca, antes, compreender o processo pelo qual um núcleo fino-úgrico, ao atravessar séculos de migrações, dominação e assimilação, incorporou elementos iranianos, túrquicos, eslavos e germânicos, até constituir uma identidade suficientemente estável para se chamar reino — e suficientemente complexa para jamais se reduzir a um só passado.
Talvez por isso os húngaros tenham reivindicado Átila como antepassado. Não por ingenuidade histórica, mas por intuição literária: Átila é menos um fato do que um símbolo, menos um homem do que uma síntese. Como toda boa origem, ele é obscuro o bastante para conter todas as outras.
O que segue, portanto, não é a história de um povo, mas a história de camadas sucessivas de povos, de deslocamentos que se tornaram sedentarismos, de estrangeiros que, ao permanecer, deixaram de sê-lo. É a história de uma fronteira — e das muitas memórias que nela insistem em sobreviver.

A Chegada dos Húngaros (Panorama de Feszty), um ciclorama monumental de 1894 de Árpád Feszty e sua equipe, retratando a lendária conquista da Bacia dos Cárpatos em 895.
Época de formação (séculos IV–X)
Entre o final da Antiguidade Tardia e o início da Idade Média, o colapso do Império Romano do Ocidente e o enfraquecimento progressivo da autoridade bizantina criaram um vazio estrutural nas regiões do Danúbio médio, da Bacia Carpática e das estepes pôntico-caspianas. Esse espaço tornou-se o principal teatro de migrações nômades oriundas da Ásia Central.
Antes dessas transformações, a região fora dominada por povos indo-europeus iranófonos — citas, sármatas e alanos — cuja presença estabeleceu padrões duradouros de organização militar, mobilidade e cultura equestre. Os Citas (Saka), dominantes entre os séculos VII e III a.C., eram mestres da arquearia montada e da arte em “estilo animal”, enquanto os Sármatas introduziram a cavalaria pesada (catáfratos) que pressionaria as fronteiras romanas. A partir do século IV, esse substrato foi progressivamente recoberto por confederações predominantemente túrquicas, impulsionadas por pressões geopolíticas na Ásia Interior e por rearranjos internos da própria estepe. Esses grupos interagiram de maneira complexa com populações eslavas, bálticas e fino-úgricas, produzindo ciclos contínuos de dominação, assimilação e síntese cultural.
O período huno (c. 370–460)
Os hunos surgem na Europa como uma confederação nômade de origem centro-asiática, possivelmente relacionada, de forma indireta, aos Xiongnu do Extremo Oriente. Embora etnicamente heterogêneos, apresentavam um núcleo túrquico significativo e uma organização militar altamente móvel.
A invasão huno-europeia por volta de 370 desencadeou o chamado Período das Grandes Migrações, deslocando povos germânicos e sármatas para dentro das fronteiras romanas e acelerando a desintegração do Império Romano do Ocidente. Sob Átila (r. 434–453), os hunos impuseram tributos a Constantinopla e devastaram regiões da Gália e da Itália, constituindo uma hegemonia breve, porém decisiva. Após a morte de Átila, a confederação fragmentou-se rapidamente devido a lutas internas e derrotas. Seus remanescentes foram absorvidos por formações políticas germânicas, eslavas e túrquicas posteriores. Apesar de efêmero, o domínio huno alterou de modo irreversível o equilíbrio político da Europa centro-oriental.
O Khaganato Ávaro (c. 567–822)
Os ávaros, grupo de origem túrquica ou túrquico-mongólica que migrou para o oeste após ser derrotado pelos Göktürks, estabeleceram-se na Bacia Carpática em 567–568. Ali fundaram um khaganato centralizado, governando populações submetidas como eslavos, gépidas e remanescentes sármatas.
Durante cerca de dois séculos e meio, os ávaros constituíram uma das principais potências militares da Europa centro-oriental, chegando a sitiar Constantinopla em 626. Seu domínio foi decisivo para a expansão eslava e para a configuração política da região. O colapso do khaganato, após campanhas francas no final do século VIII, criou um novo vazio político, posteriormente ocupado por búlgaros, eslavos e, por fim, pelos magiares.
Os búlgaros e seus estados (séculos V–X)
Os búlgaros, originalmente um povo de uma confederação túrquica conhecida como onogur-búlgara, aos poucos integraram-se às esferas huno-ávaras. A fragmentação desse grupo produziu dois destinos distintos:
- No baixo Danúbio: Sob Asparuh (c. 680), fundaram o Primeiro Império Búlgaro. Embora a elite governante fosse túrquica, ocorreu uma progressiva eslavização linguística e cultural, consolidada com a adoção do cristianismo ortodoxo em 864.
- No Volga: Outro ramo estabeleceu-se no norte, formando a Bulgária do Volga, um estado muçulmano reconhecido formalmente em 922 que floresceu até a invasão mongol. Seus descendentes diretos são os atuais chuvaches, preservando características únicas do túrquico antigo.
A conquista magiar e a formação do Reino Húngaro (c. 895–1000)
Os magiares constituem um povo de língua fino-úgrica que, após prolongada permanência nas estepes pônticas, incorporou intensos elementos túrquicos, sobretudo de origem khazar e onogur. Essa síntese produziu uma confederação semi-nômade altamente militarizada.
Sob a liderança de Árpád, os magiares penetraram na Bacia Carpática por volta de 895 (Honfoglalás), ocupando o espaço deixado pelos ávaros. Durante décadas, realizaram incursões profundas na Europa Ocidental, até a derrota em Lechfeld (955). A consolidação ocorreu com a coroação de Estêvão I (1000/1001), que instituiu um reino cristão feudal. Nesta fase, os Kabars (rebeldes túrquicos da Khazaria) e os Böszörmény (mercadores muçulmanos vinculados aos búlgaros do Volga ou khazares) integraram-se ao novo Estado, desempenhando funções militares e econômicas relevantes.
As últimas confederações nômades (séculos IX–XIII)
Entre os séculos IX e XI, os pechenegues dominaram as estepes do Mar Negro, pressionando Bizâncio, a Rus’ de Kiev e a Hungria, até sua derrota em 1091 pela aliança entre Bizâncio e os Cumanos. Grupos oghuz, como os uzes, penetraram nos Bálcãs, enquanto outros migraram para o Oriente Médio, originando os impérios seljúcida e otomano.
Os cumanos-quipchacos formaram a última grande confederação nômade, controlando a Desht-i-Kipchak (Cumania) do Danúbio à Ásia Central. Eles atuaram como aliados e inimigos frequentes de Bizâncio, da Rus’ e da Geórgia até a chegada dos mongóis.
Jász e cumanos na Hungria medieval
A invasão mongol de 1241–1242 devastou o reino húngaro e dissolveu definitivamente o poder cumano na estepe. Em resposta, o rei Béla IV convidou refugiados cumanos e jász (alanos iranófonos relacionados aos ossetas) a se estabelecerem na Grande Planície em troca de serviço militar.
Esses grupos receberam autonomia jurídica e preservaram identidades próprias por séculos, enquanto adotavam progressivamente a língua e a cultura húngaras. As regiões de Kunság e Jászság conservam até hoje essa herança, sendo o assentamento desses grupos o marco final das grandes migrações nômades em larga escala para o oeste.
Integrações irânicas
Antes das expansões túrquicas e urálicas, a estepe pôntico-caspiana foi dominada por povos iranófonos. Os citas estabeleceram o modelo clássico da cavalaria arqueira; os sármatas e alanos introduziram a cavalaria pesada. Este substrato iraniano foi a fundação demográfica e cultural sobre a qual as ondas posteriores se assentaram.
Após as invasões hunas, parte dos alanos migrou para o Ocidente com os vândalos até o Norte da África; outros permaneceram no Cáucaso, originando os atuais ossetas. Traços genéticos e culturais desse substrato persistem na região, influenciando desde a cultura material até as táticas de guerra locais.
O enigma dos székely
Os székely (sículos), grupo húngaro-linguístico da Transilvânia oriental, possuem identidade distinta e origem debatida. As teorias variam entre considerá-los descendentes de grupos túrquicos (como Ávaros ou Kabars) que adotaram o magiar, ou uma vanguarda magiar que chegou à bacia antes da conquista de Árpád.
Historicamente, atuaram como guardiões de fronteira (gyepű), mantendo privilégios jurídicos e forte coesão comunitária até a era moderna, defendendo os passos orientais contra invasões mongóis e otomanas.
Uma história estratificada
A formação dos povos húngaros não resulta de uma origem única, mas de um processo cumulativo. O núcleo fino-úgrico magiar integrou elementos túrquicos, iranianos, eslavos e germânicos, produzindo uma identidade singular.
Essa síntese manifesta-se na língua, na genética, nas instituições políticas e na mitologia histórica, incluindo reivindicações de descendência huno-cita. O húngaro moderno, por exemplo, preserva numerosos termos de origem túrquica e iraniana para conceitos de estado, agricultura e guerra. A Hungria emerge, assim, não como exceção europeia, mas como expressão paradigmática da longa história da estepe: uma civilização fundada no movimento, na incorporação e na memória — um palimpsesto onde as antigas camadas nunca foram totalmente apagadas.
SAIBA MAIS
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