James: variedades das experiências religiosas

Seria a religião um desvio de um estado psicológico sadio? Seria a religião uma manipulação sádica de líderes maliciosos? Enquanto debatedores polêmicos salientam aspectos doentios e abusivos em contextos religiosos, praticantes apontam os benefícios funcionais, quer para o indivíduo, quer para a sociedade e cultura, do fenômeno religioso. Esse debate já tem uma longa corrente de respostas baseadas em conhecimento empíricos tratados com uma balanceada crítica.

Uma resposta hoje clássica

Um dos tratamentos clássicos sobre essa questão foi proposto pelo pioneiro da psicologia William James em suas palestras Gifford sobre Religião Natural na Universidade de Edimburgo. Depois, o resultado dessas vinte aulas foi publicado em 1902 com o título As Variedades das Experiências Religiosas. A obra teve amplo reconhecimento imediato e mantém-se como um clássico nas ciências da religião.

James discute os sentimentos religiosos registrados por indivíduos em vez das instituições da religião ou de suas teologias. O registro dessas experiências faz da obra um breviário da vida espiritual de várias personalidade célebres. Elenca casos e relatos de Tolstoy, Agostinho, Fox, budismo, cristianismo, experiências de conversão, santidade e experiências místicas.

Numa época quando a religião passava a ser desconsiderada por supostamente não possuir fenômenos verificáveis, James argumenta que há sim objetos, os quais são passíveis de serem estudados, mesmo que não tangíveis. Ao invés de divagar sobre abstrações, o psicólogo propõe um exame meticuloso das expressões de experiências tidas como religiosas. Como esse exame fenomenológico e pragmático, inclusive comparativo, superou limitações metodológicas de um positivismo mecanicista.

Divide experiências religiosas em dois tipos. Um tipo seria a alma saudável, as quais valorizam aspectos positivos da vida. O outro tipo seria alma doentia, aquela atormentada pelo medo, pelo mal e pelo pecado. A busca pela integração de si e a harmonia com uma realidade maior transcendente seria o objetivo da religião e suas experiências.

Sua caracterização sobre o misticismo e experiências místicas são empregados ainda hoje: inefabilidade (incapacidade de expressar a plenitude dessas experiências), qualidade noética (as experiências produzem conhecimentos a posteriori), transiência (esses estados não podem serem mantidos por longos períodos) e passividade (o sujeito é dominado pela experiência).

Salienta que as motivações religiosas são diversas, desde a estética de sistemas de pensamento até a arquitetura religiosa. Discute a oração e seu benefício na vida interior. Argumenta a possibilidade de uma realidade maior, a qual em termos religiosos seria um mundo espiritual, de onde se formulam os significados.

James demonstra que as experiências religiosas, a espiritualidade e o fenômeno religião não se limitam ao que ocorre dentro das instituições. A religião é multifacetada e com diferentes manifestações. Contudo, ainda é sujeita a juízo de valor. No caso, a proposta era pragmatista: avaliar o fenômeno religioso por seus resultados.

Com sua abordagem pluralista da religião, James considera as formas de religião positivas ou de mente sadia como capazes de produzir, em algumas pessoas, curas físicas genuínas por meio de efeitos de expectativa. A religião daria um novo encanto à vida. Isso geraria uma segurança psicológica, paz de espírito e infunde força em sentimentos elevados, como o amor. No entanto, não ignoram fenômenos religiosos de origem patológica.

O psicólogo também aproveita seu livro para defender uma tolerância e curiosidade pelo sagrado. Mesmo o cético poderia se beneficiar experimentando uma variedade de práticas religiosas, ainda que não se identifique com nenhuma religião em particular. Nisso, James seria um dos primeiros a registrar positivamente, do ponto de vista de uma matriz religiosa ocidental, de como o indivíduo acolhe diversas experiências oriundas de tradições distintas.

Muita gente poderia torcer o nariz a essa observação do pluralismo aplicando o vago carimbo “sincretismo”, mas é a realidade dos fenômenos religiosos e de todas grandes tradições religiosas. Isso se assemelha ao que Deleuze e Guattari (1986) chamam de nomadologia. Dada a complexidade do mundo, as pessoas pegam a partir de todas as fontes possíveis o que for relevante para carregar durante uma jornada. E muitas instituições ou objetos não são produtos, mas processos formados pelo fluxo daquilo que carregamos. Noto isso na leitura bíblica (objeto do meu atual projeto de pesquisa). Dado o tamanho da Bíblia, todos leitores tendem a picá-la em fragmentos, atribuir diferentes valores (se um verso é meramente descritivo ou se deve ser lido como normativo) e reconfigurá-la conforme seus pressupostos e interesses em um quebra-cabeça cujas imagens resultantes variam. Meio a essa fluidez, há instrumentalização da Bíblia para fins danosos, como abusos espirituais e totalitarismos políticos. Contudo, há outras recepções criativas que avançam a comunhão.

O livro, de certo modo, é uma expansão da palestra dada em 1896 “A vontade de crer”. Com base no pragmatismo, James admite uma suspensão do ceticismo e a rejeição do evidencialismo como base para o conhecimento válido. Um raciocínio contingencial concederia que nem tudo é possível de se conhecer com base em evidências, porém são conhecimentos construtivos que residem em hipóteses de trabalho. James antecede o “século do Espírito” que seria o século XX: pós-positivismo, pentecostalismo, ideologias totalizantes (e algumas totalitárias) aplicadas em massa.

As várias experiências de James

William James era filho dos afluentes Henry James e Mary Robertson Walsh. Henry era um intelectual orgânico, um swedenborgiano e socialista utópico. Outros filhos foram os não menos brilhantes escritores Alice James e Henry James Jr. Apesar de sua formação como médico, William James se voltou para a psicologia e depois para a filosofia. Seu The Principles of Psychology (1890) é um clássico e foi pioneiro da psicologia como ciência em Harvard. Sua recepção das ideias pragmatistas de Peirce (ainda que divergentes) popularizou esse paradigma filosófico. A teoria pragmática da verdade de James levou em consideração a teoria da verdade da correspondência, a teoria da verdade da coerência e uma práxis consequencialista. A verdade seria verificável na medida em que pensamentos e afirmações correspondem a coisas reais, então como seus elementos se encaixam coerentemente, como peças de um quebra-cabeça; assim, os resultados observados se aplicam à prática de modo válido.

Pouco comentado é seu papel como brasilianista. Em 1865, aos 23 anos, o estudante de medicina William James acompanhou o naturalista Louis Agassiz a uma expedição à Amazônia. O diário, as cartas e os esboços de James oferecem um retrato do Brasil. Neles, admira a natureza exuberante, reclama da sujeira e preços caros do Rio, elogia os modos corteses dos brasileiros.

SAIBA MAIS

Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Nomadology: the war machine. New York: Semiotext(e), 1986.

James, William; Machado, Maria Helena P. T. Brazil through the Eyes of William James: Letters, Diaries, and Drawings, 1865-1866 (O Brasil No Olhar de William James: Cartas, Diários e Desenhos, 1865-1866). Cambridge, MA: Harvard, University Press, 2006.

James, William. The Varieties of Religious Experience : a Study in Human Nature. Adelaide: eBooks@Adelaide, 2009.[1902].

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