Mascarados: uma microetnografia

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O uso ampliado de máscaras devido à COVID-19 resulta em paradoxos. O objeto que serve para ocultar uma pessoa passa a revelar detalhes que não seriam perceptíveis em um mundo desmascarado.

Prestes a embarcar rumo ao Brasil, constato o quanto as máscaras ocultam e revelam. Na fila do check in os agentes de aeroporto recusavam o embarque de quem não estivesse com máscaras apropriadas. No país em questão, não foi necessário empregar o uso público de máscaras, pois a população teve uma consciência de enfrentar as perdas, mas ficar em casa e praticar o distanciamento social. Alguns passageiros reclamavam e levantavam a voz. Sentiam-se lesados de seus direitos.

A expressão impassível dos agentes e o olhar de reprovação de outros passageiros da fila atestavam o consenso de que o comportamento da pessoa alterada era antissocial.

Volta e meia aparecia alguém com uma máscara muito improvisada. A recusa de embarque se repetia. Porém, esse indivíduo chegou com uma máscara de guardanapo de papel (acredite, há guardanapos de papel que parecem de pano de tão denso) e com sua recusa de embarque, perguntou educadamente onde podia adquirir uma máscara nos padrões desejados.

A agente do aeroporto sorriu. Indicou um café no saguão que potencialmente poderia ajudar. Não foi necessário. Umas duas ou mais pessoas começaram a fuçar em seus pertences. Uma delas ofereceu uma máscara extra, descartável, para o viajante despreparado.

O uso de máscaras nas epidemias é antigo, desde as épocas em que se acreditavam em maus ares. Além do seus aspectos médicos (proteger agentes de saúde e pessoas vulneráveis) o uso do adereço indica que o estado normal das coisas foi suspenso. (LYNTERIS, 2018). A efetividade médica das máscaras pode ser limitado se considerarmos que um vírus pode ser menor que um poro no tecido, mas como estudos apontam, o vírus do COVID-19 circula em aerossóis. E diferentes tecidos possuem graus variados de proteção contra o aerossol fatal (FOSCHINI, 2020). Ou seja, há um componente sanitário. Mas, voltemos a outros aspectos das máscaras.

As máscaras não se reduzem às formas. Seus atributos simbólicos e funcionais extrapolam o propósito protetivo bem como suas características estéticas.

As máscaras possuem um caráter político. Nos países asiáticos, as máscaras transmitem a ideia de responsabilidade (BURGESS; HORRI, 2012). Isso se deve as recentes epidemias, uma estrita expectativa social de higiene e colaboração, senso de respeito com a saúde alheia e amor-próprio. Já nos Estados Unidos, a resistência ao uso de máscara é mais pelo seu conteúdo simbólico (YU-WEN Hung., 2018). Esse parâmetro é repetido é vários países ocidentais, com justificativas individualizantes ou da expectativa de que em público as pessoas sejam “transparentes”.  (KLEEP; HAUGRØNNING, 2020).

Ironias das ironias, o ex-policial italiano e agitador político, Antonio Pappalardo, utiliza uma indumentária, os coletes laranjas que indicam segurança e proteção para disseminar medidas anti-protetivas. O ex-defensor da lei e da ordem apregoa com seu movimento Gilet Arancioni que não há pandemia, distanciamento social é ditadura e as máscaras são ineficientes. Sem máscaras nos ajuntamentos públicos de suas manifestações, o movimento veste a personalidade do desafio e da individualidade. A privação epistêmica e a vontade pela agência explicam como é possível ajuntar simpatizantes dispostas a compartilhar as mesmas indumentárias.

Que as máscaras transformam o indivíduo já é um fato bem conhecido. Dos bailes de máscaras ao célebre estudo de Goffman, o vestir de uma nova máscara altera a personalidade.

O termo latino persona veste diferentes máscaras etimológicas. Teria origem na obscura língua etrusca phersu, máscara. Talvez  a origem etrusca esteja correlacionada com o farcire latino, o ato de entupir um animal com recheios para assar e, posteriormente, convertido em farça, os teatrinhos meia-boca para entreter rapidamente o público nos interlúdios das grandes peças. Outra possível origem é do latim per sonare, para indicar o som transformado ao passar pela boca da máscara. Por fim, é ainda plausível que persona venha do teatro grego, a prosopon, a máscara dos atores, alterando as características que compunham o personagem. Qualquer forma, pessoa veio das máscaras teatrais. Do mesmo modo que as forma do étimo oculta sua origem, cada máscara abre a oportunidade de reinterpretação.

Antes da pandemia as máscaras dos pseudônimos (ou perfis falsos mesmos) permitiam uma nova maneira de socialidade na internet. Tímidos poderiam interagir com rol maior de pessoas com maior segurança. No entanto, pessoas com máscaras de docilidade na vida pública apresentaram máscaras demoníacas na vida virtual.

O potencial de camuflar das máscaras confundem os interlocutores. Uma pessoa pode passar despercebida. Um bom relações públicas pode maquiar seu cliente de modo palatável para a audiência. Em seu uso honesto, reduz a transparência para disfarçar as as imperfeições que são de foro íntimo decidir se revela ou não. De modo desonesto, falsifica atribuições e qualidades que o mascarado jamais tenha intenção de possuir.

Dos zorros, dalís da Casa de Papel e guy fawkes do V de Vingança as máscaras são defesas da população revoltada contra as assimetrias de poder. O inverso também ocorre: agentes provocadores infiltram com máscaras de ativistas para desacreditar as causas e mover a opinião pública contra elas. O Ku Klux Klan e os uniformes paramilitares dos grupos nazifascistas representam a mesma lógica de ocultação coletiva e anonimato criminoso.

A impressão ao chegar ao Brasil e ver pessoas todas mascaradas é impactante. Uns reclamam das autoridades sanitárias, mas se conformam com novo acessório. Outros, revestidos de uma ilusão de invulnerabilidade, um banalidade da catástrofe corrente, um individualismo desafiador ou outro motivo, circulam sem máscaras ou com o objeto no queixo, na orelha, na boca, na testa…

Alguns, visivelmente sem condições financeiras improvisam máscaras, outros tentam mitigar a seriedade da situação com máscaras cômicas.

Essa oposição entre usar e não usar máscaras deixou mais claro quais máscaras as pessoas vestem em situações de riscos socialmente compartilhados. Com o pano sobre a face ou não, ninguém sai de casa sem máscaras.

Máscaras UFU

SAIBA MAIS

A antropologia da moda: dimensões e abordagens

As muitas faces de uma máscara: Erving Goffman

BURGESS, Adam; HORRI, Mitsutoshi. “Risk, ritual and health responsibilisation: Japan’s ‘safety blanket’ of surgical face mask-wearing.” Sociology of Health & Illness Vol. 34 No. 8 2012 ISSN 0141–9889, pp. 1184–1198 DOI: 10.1111/j.1467-9566.2012.01466.x

FOSCHINI, Mauricio, et al. “Aerosol blocking assessment by different types of fabrics for homemade respiratory masks: spectroscopy and imaging study.” medRxiv (2020).

KLEEP, Ingunn Grimstad; HAUGRØNNING. Face masks: Why do different countries in the world have such different recommendations? ScienceNordic. ScienceNorway. 29 de maio de 2020.

LYNTERIS, Christos. “Plague Masks: The Visual Emergence of Anti-Epidemic Personal Protection Equipment.” Medical Anthropology,  2018, DOI: 10.1080/01459740.2017.1423072

URBANO, Bruno. Antropologia de máscara. Confinaria: etnografia em tempos de epidemia. 20 de junho de 2020.

YU-WEN Hung. A Study of Barriers to the Wearing of Face Masks by Adults in the US to Prevent the Spread of Influenza. A Thesis in Master of Science in Design at Arizona State University, 2018.

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