Facundo: a possibilidade de progresso para Sarmiento

Da vastidão esparsamente povoada dos pampas argentinos, um líder gaúcho, um caudillo, comanda as forças interioranas federais diante da hegemonia de Buenos Aires. Umas das interpretações pioneiras e monumentais da condição dos latino-americanos, Facundo é um tanto de biografia quanto um ensaio sociológico com bases na geografia e história.

Seu autor Domingo Faustino Sarmiento (1811 – 1888) busca delinear a consciência nacional argentina. O país vivia em uma aliança precária entre Buenos Aires e províncias interioranas. Com pouco sentimento de identidade nacional comum, guerras civis praguejavam a jovem república.

Uma obra complexa

Apesar da dificuldade de definir o gênero dessa obra, não se trata somente de um apanhado de reportagens, observações e opiniões do autor publicados em vários jornais a partir de Santiago do Chile, onde estava exilado devido às perseguições do ditatorial Juan Manuel de Rosas (1793 – 1877). Há nela uma linha condutora, a análise das causas e efeitos do autoritarismo e demagogia na Argentina – análise que ainda hoje transcenderia as fronteiras do país platino para toda a América Latina.

Em uma abordagem que hoje a chamaríamos de microssociologia, utiliza a biografia de Juan Facundo Quiroga (1788 –1835), um gaúcho que se tornou um líder miliciano regional e peitou o regime de unitarista de Buenos Aires, para esboçar um estudo sociológico, político e his­tórico da Argentina. Contudo, o anseio pela liberdade dos gaúchos fez de Facundo Quiroga um bárbaro caudillo.

Facundo conta com uma profundidade narrativa e analítica calcada por influências de um romantismo que se confundia com liberalismo em Sarmiento. No entanto, não é uma adesão entusiasta ao romantismo, antecedendo o realismo e o naturalismo em suas descrições nem tanto positivas do povo nativo. Contudo, vê-se uma recepção crítica de ideias de Herder, Hegel e François Guizot e a rejeição do classicismo árcade do regime espanhol. Informado também por um “socialismo” pré-positivista de Saint-Simon, Sarmiento preocupa-se em formar um Estado que tenha como meta o bem-estar de sua população, daí seu ativismo pela educação pública, crendo ser ela o caminho para a civilização.

Não é sem preconceitos que o autor propõe uma nova identidade nacional. Sarmiento defendia que a formação da nacionalidade argentina dependia de romper com seu passado espanhol bem como de seu passado indígena[1]. Entretanto, tomava a “civilização” europeia e norte-americana como modelos para contrapor à barbárie platina.

A noção de história de Sarmiento, como mencionado, é pré-positivista e romântica. Busca exercitar a razão para assegurar a liberdade face ao despotismo. Contudo, a grande concepção crítica de Sarmiento reside na oposição antitética: se a cidade (exemplificada por Buenos Aires) representa a civilização, ela é controlada por um déspota (Rosas). Se os campos dos pampas representam a liberdade, está em franco regresso a um estado degenerativo da barbárie no qual impera a brutalidade do caudillismo, bem representado por Facundo Quiroga. As influências do meio (histórico e geográfico) sobre o homem permeiam a obra, mas sempre considerando essa antítese.

A antítese entre civilização e barbárie aparece em toda a obra com as dicotomias: vida urbana x vida rural; Buenos Aires x províncias interioranas; os unitários x federais; militares de carreiras x caudillos milicianos. A antítese é até mesmo pessoal: Sarmiento o narrador e personagem autobiografado representa a ilustração oposta à brutalidade e ignorâncias de Facundo e Rosas. É a versão sul americana do conflito de Atenas e Esparta, a cidade ilustrada e comercial “civilizada” contra os campônios rudes pastoralistas e bárbaros, de Tucídides. Mas, essa oposição é problemática para a Argentina, pois resulta nas instabilidades da guerra civil constante desde sua independência.

Jean Léon Pallière - Idilio criollo

Esboço esquemático

Introdução

  • Advertência do autor
  • Introdução
  • Carta-prólogo da edição de 1851

Nessa parte introdutória Sarmiento apresenta seus propósitos. É um ensaio para si e para suas ideias.  Sarcástico, não poupa seu desdém pela ignorância de seus inimigos:

No final do ano de 1840, deixei minha pátria banido com lástima, ferido, cheia de contusões, socos e golpes recebidos no dia anterior em um daqueles sangrentos batalhões de soldados e mazorqueros. Quando passei pelos banhos de Zonda, sob os Braços da Nação, que eu havia pintado em uma sala em dias mais felizes, escrevi estas palavras com carvão:

On ne tue point les idées.[2]

O governo, a quem o incidente foi comunicado, enviou uma comissão encarregada de decifrar o hieróglifo, que dizia conter indignidades, insultos e ameaças ignóbeis. Ouvida a tradução, disseram “E o que quer dizer isso?”

Descrição da geografia, história e sociedade da Argentina. Capítulos I ao IV

  • Capítulo I. Aspecto físico da República Argentina e as características, os hábitos e as idéias que gerou
  • Capítulo II. Originalidade e características argentinas: o rastreador, o baqueano, o gaúcho malvado e o cantor.
  • Capítulo III. Associação: A pulpería
  • Capítulo IV. Revolução de 1810

Como Os Sertões de Euclides da Cunha que se inicia com uma descrição da Terra, do Homem para no final apresentar o Conflito, Sarmiento apresenta aspectos geográficos e humanos da Argentina.  O Homem em análise será um em específico, Facundo Quiroga.

Com o pressuposto que o meio afeta o caráter, Sarmiento descreve a geografia física e seu isolamento como fatores que influenciam a personalidade do argentino interiorano. Contrapõe a vida urbana com a vida no campo, ressaltando o aspecto civilizado da primeira em contraste à brutalidade primitiva e supersticiosa da última.

Registra uma tipologia de gaúchos, o rastreador, o baqueano, o gaúcho malvado e o cantor, descrevendo seus modos de vida. Retrata o papel das pulperías, as vendas interioranas, local de bebida, jogos e socialização do gaúcho. Ainda no jogo de antíteses,  o gaúcho vive para o ócio e o divertimento, mas enfrenta o trabalho duro do campo. É um o individualista que se sujeita lealmente a um código de honra. Vive na miséria para morrer de forma violenta.

O retrato de Sarmiento antecede o ciclo de Martín Fierro na literatura argentina.

Biografia de Facundo Quiroga. Capítulos IV ao XIII

  • Capítulo V. Vida de Juan Facundo Quiroga: Infância e Juventude
  • Capítulo VI. La Rioja: O comandante da campanha
  • Capítulo VII. Sociabilidade (1825) Córdoba – Buenos Aires
  • Capítulo VIII. Ensaios
  • Capítulo IX. Guerra social: La Tablada
  • Capítulo X. Guerra Social: Oncativo
  • Capítulo XI. Guerra social: Chacón
  • Capítulo XII. Guerra social: cidadela
  • Capítulo XIII. Barranca-Yaco!!!

Facundo Quiroga é como os outros gaúchos: nascido em uma família humilde e honesta, foge da escola, sabe mal ler ou contar, mas com sua coragem e violência acaba se tornando um líder que motiva pelo terror. É indomável, supersticioso, violento e individualista. Apesar de sua ojeriza pela “barbárie”, Sarmiento retrata Facundo como um herói trágico.  As várias batalhas, a injustiça, as mortes banais e as vinganças dão uma atmosfera de terror e insegurança. O gaúcho é o símbolo das condições e identidade argentinas.

Responsabiliza Rosas pela morte de Facundo em uma emboscada em Barranca-Yaco, dando continuidade da barbárie no caudillo de Buenos Aires.

Análise sobre o governo tirânico de Rosas (capítulos XIV e XV, apêndice)

  • Capítulo XIV. Governo unitário
  • Capítulo XV. Presente e porvir
  • Apêndice: Proclamas de Facundo Quiroga, tido como o único manifesto político escrito pelo caudillo.

Parte que não apareceu na primeira edição inglesa, nem na segunda ou  terceira edições espanholas, critica o governo de Rosas que, caudillo desde Buenos Aires, teria como unificar o país, porém não o faz. Discorre também sobre a emigração, principalmente dos refugiados políticos adeptos de Rivadavia, a classe letrada, que estava no Uruguai. Culpa Rosas pela dispersão da população e argumenta que o país ganharia com a imigração europeia.

História Editorial

Inicialmente publicado como folhetim em um jornal de Santiago, sob o título Civiliza­ción y barbarie: vida de Juan Facundo Quiroga, para afrontar os emissários de Rosas enviados ao Chile para pedir a cabeça do jornalista. O sucesso dos folhetins resultou em edições consolidadas e, a partir de sua quarta edição realizada em Paris em 1874, recebeu o título presente de Facundo o civilización y barbarie. Traduzida ao francês e inglês durante a vida de Sarmiento, a obra ganhou avaliações críticas tanto na Argentina quanto internacionais. Em português, Facundo ou civilização e barbárie foi publicado pela Cosac Naif (2010), com tradução de Sérgio Alcides.

O autor

Domingo Sarmiento

Ironicamente, Domingo Faustino Sarmiento não deixa de ser um caudillo, ainda que esclarecido, da Argentina. Nascido na província andina de San Juan, quando se viviam em épocas hesitantes da independência da Espanha, seja como a autônoma Cuyo, seja por integrar-se ao Chile ou às Províncias Unidas do Rio da Prata capitaneada pelos portenhos.

O filho de uma família de criollos modestos era autodidata e, com pouco acesso a livros, prendeu sozinhos várias línguas e uma sólida cultura geral. Lutou ao lado dos unitários contra as tropas de Facundo, sendo capturado em 1829. A partir do ano seguinte alternou entre vários empregos no Chile e nos Andes argentinos.

Exilado no Chile em 1840 pelo governo Rosas, tornou-se um jornalista hábil e como escritor prolífico suas obras completas reúnem 53 volumes, a maioria ensaios e crônicas costumbristas, resenhas, artigos polêmicos. Além de Facundo, outras obras de maior extensão são Viajes en Europa, África y América (1849–1851), De la educación popular (1849).

De 1854 em diante combinou a escrita com vários cargos públicos em Buenos Aires ou no exterior, quando esteve em Washington como embaixador argentino. De volta dos Estados Unidos, entre 1868 e 1874 foi presidente da Argentina, cujo mandato foi centrado em reformas, adoção de tecnologias e criação de um sistema educacional público. Com essa causa continuou na administração pública, sendo o patriarca da educação argentina e epônimo para estudioso ou sabichão.

 * * *

Facundo, obra-prima da literatura de não ficção criativa, é uma apologia a um projeto modernizador. Deve ser lido em cotejo com outras obras de Sarmiento e seu ativismo educacional. Se hoje colocarmos entre parênteses os preconceitos contra a vida rural, indígena e de outras minorias, bem como sua fé ingênua no progresso europeu como objetivo de civilização, ainda restam válidos os anseios de Sarmiento de ver instituições fortes em lugar do personalismo de líderes fortes. Nesse sentido, Facundo continua atual para a América Latina, senão para o mundo.

VEJA TAMBÉM

Manoel Bomfim: A América Latina

Resumo de Casa-grande & senzala

Os Sertões

LUGONES, Leopoldo. Historia de Sarmiento. 1911.

[1] “Los indios no piensan porque no están preparados para ello, y los blancos españoles habían perdido el hábito de ejercitar el cerebro como órgano”. SARMIENTO, Domingo. Conflictos y armonía de las razas en América. Buenos Aires: S. Ostwald (Imp. de Túñez), 1883.

[2] Não se pode matar as ideias.

SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo o civilizacion y barbarie (1845)

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