O inferno de August Strindberg

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August Strindberg, auto-retrato, Gersau, Suíça, 1886.

Swedenborg descreve o Inferno da seguinte maneira: A alma condenada habita em um esplêndido palácio, leva uma vida luxuosa e até se considera um dos eleitos. Gradualmente, os esplendores desaparecem e a alma miserável descobre que está confinada em um casebre miserável e cercada de sujeira. Strindberg. Inferno VIII

O  que passa na cabeça de um transtornado é ao mesmo tempo doloroso e fascinante. Nesse romance autobiográfico o dramaturgo sueco August Strindberg (1849 –1912) retrata o período entre novembro de 1894 e maio de 1897 quando ficou obcecado em fazer ouro em um quartinho em Paris. As experiências como alquimista foram acompanhadas de surtos psicóticos, a pobreza corrosiva e o envolvimento com o oculto; experiências que destruíram seu casamento.

Strindberg era na época um aclamado autor. Correspondente de Nietzsche, inspirador de Franz Kafka e Walter Benjamin, admirado pelo colega dramaturgo Ibsen, Strindberg levava uma vida errática: consumia-se em drogas, vivera casamentos malsucedidos, tinha picos de produção literária com momentos de indolência.

A narrativa inicia-se em Paris, relatando suas experiências alquímicas e o aperto de viver sem dinheiro. Seguem suas anotações em um diário e estada com a família da esposa e filha na Áustria. Por fim, há a expectativa de “Redenção”, título de um dos últimos capítulos, por meio de internação em um hospital na Suécia e na conversão religiosa — a qual na realidade não aconteceria.

Em uma linguagem religiosa (e permeado pela descrença), o livro contém quinze capítulos. Inspira-se no químico forense Mathieu Orfila (e vê a presença dele no albergue em que mora), faz menções à Séraphita de Balzac, ao Sylva Sylvarum de Francis Bacon, aos escritos místicos de Swedenborg, além de alusões a Dante, inclusive com capítulos intitulados “Purgatório”, “Inferno” e “Beatriz”. As referências à Bíblia, especialmente o livro de Jó, aparecem aqui e acolá.

Retratando um sincretismo confuso, durante a crise do inferno o autor/narrador acende velas a todos os credos que entra em contato: ateísmo, teosofia, catolicismo, pietismo protestante e o swedenborgianismo.

Seus procedimentos alquímicos são relativamente pueris: tenta misturar ferro com enxofre para obter o ouro. Se é que realmente conseguiu algum produto disso, certamente teria sido a pirita: o ouro-dos-tolos. Apesar da falta de dinheiro aguda, aparentemente Strindberg não tentou ganhar dinheiro com seu “ouro”. O autor via na alquimia os ideais antigos e místicos de progresso espiritual. Com sua “descoberta”, teme que a seja roubada por outros químicos, pelos russos, pelos pietistas, pelos católicos, pelos jesuítas e pelo teosofistas.

Strindberg parece padecer de uma apofenia patológica: vê ouro onde dificilmente havia, relações e coincidências em tudo, perseguições e espionagem em cursos, figuras antromorfas e a Virgem com o Menino Jesus em pedaços de carvão. Tenta achar causas para a semelhança da borboleta-caveira com o crânio humano pela correlação do animal com a morte. Recusa qualquer tentativa de trazê-lo à razão.

O autor naturalista como personagem comporta-se como um narrador não confiável: ele é o protagonista e o violão. Apesar de admitir candidamente suas ideias alquímicas — suficientemente malucas para a química da virada do século XX — não dá para distinguir o que é ficção ou o que foi realidade. Parte da narrativa com certeza é criação meramente literária, parte do inverossímil resulta da saúde mental pobre do autor e parte resulta de anotações contemporâneas aos eventos registradas em seu diário (embora editado mais tarde pelo próprio autor).

Em meios aos avanços tecnológicos e científicos atuais, a obra continua “fresca” um século depois. A descrença no conhecimento científico institucionalizado, a paranoia com teorias da conspiração, o colapso da saúde mental, a dependência de substâncias, a percepção de parâmetros e correlações fantasiosas (apofenia) ocorrem em níveis epidêmicos no século XXI.

Em português há edições pela Hedra (2010) na tradução de Ivo BarrosoEditora 34 (2009) traduzido por Ismael Cardim e em Portugal pela Sistema Solar (2015). A obra foi originalmente escrita em francês, estando disponível em inglês no site da Gutenberg.

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