A Reforma sem Lutero

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Muro da Reforma em Genebra. Incidentalmente, sem Lutero.

Em O Anti-Cristo Nietzsche[1] culpa Lutero pelo malogro do triunfo da moral humanista do Renascimento face à moral cristã. Em um tempo em que os Bórgias sintetizavam o poder ao prazer, uma nova moral emergiria substituindo a humildade imposta do cristianismo. Porém, segundo o filósofo alemão, seu conterrâneo reformador pôs isso a perder. Daí surgiriam novas formas de subjetividades, a Reforma e a Contra-Reforma, a idolização do Estado, da ciência e da raça…

As diatribes de Nietzsche têm o fascínio de nos provocar, agitarmos dos marasmos consensuais. Mas, seria historicamente acurado? Seria a Reforma fruto das 95 teses marteladas por Martinho Lutero? E se não fosse o agostiniano alemão, teria ocorrido a Reforma? Em uma arbitrária data para relembrar os 500 anos da Reforma Protestante, é oportuno refletir sem se prender ao consenso impensado da historiografia das cartilhas.

Coloquemos as posições de Nietzsche em parênteses, considerando-as como análises tipológicas, não historicamente acuradas. Imaginemos que as ações de Lutero passaram desapercebidas e que ele morreu na obscuridade do claustro depois de uma carreira sem brilhos em uma universidade provinciana. O resultado é que haveria a Reforma protestante.

Tomando as distintivas da Reforma, sintetizadas pelas cinco solas, [2]as ideias proclamas por Lutero já eram correntes antes do 31 de outubro de 1517.

O interesse renascentista pelas Escrituras

Na Universidade de Paris o humanista Jacques Lefèvre D’Étaples (1455–1536)[16] já vinha argumentando pela primazia das Escrituras e pela justificação pela fé ao menos desde 1509. Nesse ano, Lefèvre d’Étaples (ou Faber Stapulensis) publicou uma edição poliglota dos Salmos o Quincuplex Psalterium. A busca renascentista pelos melhores textos da antiguidade e a análise filológica, cujo ápice foi o trabalho de Lorenzo Valla (1407–1457), eram animadas pela difusão da erudição bizantina desde a queda de Constantinopla e pela invenção da imprensa que tornava as obras mais acessíveis. Humanistas, como Erasmo de Roterdã (1466 –1536), movidos pelo princípio de ad fontes contrastavam as práticas da época da Igreja Católica com os preceitos encontrados na Bíblia. Com isso, a tese da primazia da autoridade das Escrituras ganhava terreno alternativa viável às doutrinas do conciliarismo e da supremacia papal –teorias em disputa desde o Cisma do Ocidente (1378–1417) – como fonte máxima de autoridade eclesiástica.

Vale apontar outra tendência renascentista acerca da Bíblia. O método interpretativo da quadriga dos escolásticos vinha sendo contestado especialmente em Paris desde o século XII, tanto na Sorbonne quanto na escola de São Vítor pelos biblici — Pedro Cantor, Valter de São Vitor, Bernardo de Claraval. Eles propunham formular uma teologia não com base nas discussões escolásticas, mas a partir da leitura das Escrituras mediada pela patrística e cânones dos concílios históricos. Maior passo nessa direção deu Nicolau de Lira (c. 1265–c. 1349), um hebraísta e comentarista que, apesar de apreciar os sentidos literal e figurativo, insistia que somente uma leitura literal poderia servir de base para a teologia. Admirado por Wylciff, Lutero, seu método inspirou os humanistas como Lefèvre D’Étaples, John Colet (c. 1466–1519) – que apregoava a busca do sentido simples aliado a uma compreensão do contexto histórico dos textos bíblicos –, influenciando a Erasmo.

Um resultado já esperado por esse interesse humanista pelas Escrituras foi a publicação de edições críticas. Na Espanha o cardeal Cisneros iniciou a edição crítica da Bíblia em 1502 e em 1514 sairia impresso o primeiro volume da Poliglota Complutense, com o Novo Testamento grego pela primeira vez produzido com a nova tecnologia. Embora os esforços editoriais do cardeal Cisneros tenham o crédito da primazia de publicar a Bíblia nos idiomas originais, seria Erasmo quem se preocuparia em fazer um minucioso estudo filológico para produzir uma edição realmente crítica. O Novum instrumentum de Erasmo publicado em 1516 foi lido por humanistas e futuros reformadores, como Lutero. A atitude reacionária contra os avanços nos estudos bíblicos era expressa por um tal Conrado de Hersbach na Universidade de Colônia:

[Os humanistas] descobriram uma língua chamada grego, da qual devemos nos manter a guarda. É a mãe de todas as heresias. Nas mãos de muitas pessoas vejo um livro, o qual chamam de O Novo Testamento. É um livro cheio de espinhos e venenos. Quanto ao hebraico, meus irmãos, é certo que aqueles que o aprendem cedo ou tarde se tornam judeus. [17]

O renovado interesse pelas Escrituras reacendeu o debate sobre o cânone bíblico[3]. Não era algo novo, embora fosse tema circunscrito aos meios escolásticos[4]. Os humanistas debatiam a autenticidade e pertença de obras à corpora de autores clássicos: foi assim com o corpus aristotélico, com os escritos de Cícero, com a pseudoepígrafa cristã e judaica, dentre outros.[5]  O mais notório debate foi conduzido pelo hebraísta cristão Johann Reuchlin (1455–1522) quando algum ser iluminado (pelo antissemitismo) defendeu queimar as escrituras judias, tanto a Tanakh quanto o Talmud. Com a sutileza escolástica de chamar seus oponentes de porcos, cabritos e imbecis, Reuchlin entre 1506 e 1520 evitou não só a queima de livros em hebraico quanto chamou à atenção pública o fato de os chamados livros deuterocanônicos do Antigo Testamento não aparecem nas edições hebraicas da Bíblia. O próprio tradutor da Vulgata, Jerônimo, escreveu nos prólogos dos livros deuterocanônicos sua dúvida acerca da canonicidade deles. O nascente protestantismo encampou o partido da versão curta do cânone veterotestamentário, mas a questão somente pacificaria entre os católicos com o concílio de Trento (1545 – 1563).

Junto ao renovado interesse pelas línguas e textos antigos, a Renascença despertou o gosto pela língua vernácula. Editores começaram a publicar textos em italiano, francês, espanhol, alemão, inglês e outras línguas locais. Na Polônia, uma tradição de cantar hinos em vernáculo é bem anterior à Reforma. Consequentemente, também apareceram traduções da Bíblia ao vernáculo. O próprio Lefèvre d’Étaples publicaria um popular Novo Testamento em francês em 1523, alguns anos depois (e antes de Lutero) publicaria a Bíblia inteira.

A leitura de Lefèvre d’Étaples da Bíblia influenciou a leitura que Lutero fez do livro de Romanos. Mas não foi só o reformador alemão o único a ser afetado pelo professor francês. Seu discípulo, o bispo Guillaume Briçonnet (c. 1472 –1534) tomou a iniciativa de reformar sua diocese em 1516, estimulando a pregação e leitura da Bíblia em francês. Para tal, a Bíblia de Lefèvre d’Étaples foi largamente usada. Outro discípulo de Lefèvre d’Étaples, o irascível Guillaume Farel (1489 –1565) estimulou os valdenses dos Alpes a adotarem tanto a Reforma quanto o culto em francês, encomendando para Pierre Olivetan (c.1506–1538) uma versão da Bíblia. Farel ainda seria o mentor da Reforma de Calvino em Genebra. Dessas iniciativas nasceram os huguenotes, a Igreja Reformada na França e a Igreja Reformada genebrina. Assim, a Reforma de língua francesa pode ter sua origem traçada não em Lutero, mas em Lefèvre d’Étaples, o qual como Erasmo ou Reuchlin nunca oficialmente deixou a Igreja Católica.

Lefèvre d’Étaples era um típico acadêmico com tendências reformistas. Não sem motivo a vertente magistral da Reforma surgiu em universidades – Wittenberg e Paris – ou fez surgir universidades – Zurique e Genebra –, pois eram ambientes propícios para a livre inquirição teológica. Instituições relativamente fora das interferências estatais e do clero, as universidades eram fóruns para novas ideias. Foram nas universidades de Oxford e de Praga que antecessores da Reforma, John Wycliffe (c. 1328–1384) e Jan Huss (1369–1415), propagaram suas doutrinas e movimentos. Na própria Sorbonne de D’Étaples debatiam-se as teses de Anselmo (1033–1109), teólogo articulador da doutrina da substituição penal ou da teoria da expiação vicária, na qual Cristo teria morrido por causa e em lugar da humanidade para expiar-lhe os pecados. Essa teoria deixava sem muito papel a Igreja ou os sacramentos, pois bastaria a graça para redimir a humanidade do pecado original. Ainda em Paris, Abelardo (1079–1142) provocava com seu intencionalismo, dizendo que eticamente mais valia a intenção que propriamente a consequência da obra feita. Soa como Lutero na doutrina da justificação pela fé.

A doutrina da justificação pela fé somente

A doutrina da justificação pela fé é antiga no Cristianismo, embora fosse tópico marginal[6]. Basicamente descreve o processo de o homem, tido como pecador desde queda de Adão e Eva, torna-se justo perante Deus. No catolicismo medieval, embora houvesse uma pluralidade teológica sobre o assunto, predominava o papel institucional da igreja como controladora desse processo de justificação, seja pela prática de boas obras sancionadas pelo clero, seja por atos devocionais (desde participar de sangrentas cruzadas até as peregrinações e os jejuns). Ou aida, ser justificado pela aquisição das indulgências –o estopim para Lutero.

Vários conceitos escolásticos contribuiram para o renascimento dessa doutrina. A teoria da satisfação de Anselmo levava a uma dependência cristológica que diminuia o papel institucional da Igreja como veículo da graça. Por outro lado, o intencionalismo de Pedro Abelardo considerava as motivações subjetivas como fonte de eficácia ao invés das obras em si.

A doutrina da justificação pela fé voltou ao cenário do debate teológico do Renascimento principalmente com a edição dos textos patrísticos. Como citado, antes de Lutero Lefèvre d’Étaples já a ensinava na Universidade de Paris. Outro reformador, Ulrich Zuínglio (1484–1531) chegou às mesmas conclusões de Lutero de forma independente. Quanto o apenas pela fé, também era uma leitura corrente de Romanos 3.28 antes de Lutero. Por exemplo, Tomás de Aquino (c.1225–1274) ensinou:

Portanto, a esperança de justificação não é encontrada nelas [as exigências morais e cerimoniais da lei], mas na fé, Romanos 3:28. Consideramos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei. Aquino, Exposição da  Epistola de 1º Timóteo, 1:3.[7]

Há várias traduções católicas anteriores ao Concílio de Trento (por exemplo, a Bíblia de Nurembergue de 1497) que consta a expressão “pela fé somente” em Romanos 3:28. Desde a geração da patrística imediata aos apóstolos aparece menções dessa doutrina, mas não sistematicamente tratada como fizeram os reformadores. Como ensinou Clemente, bispo de Roma, por volta do ano 100 d.C.:

Assim, todos atingiram à glória e à grandeza, não por si mesmos, nem por suas obras ou pela justiça praticada, mas por vontade Dele. Também igualmente entre nós, que fomos chamados por Sua vontade em Cristo Jesus, já que não nos justificamos a nós mesmos, nem por nossa sabedoria ou inteligência, ou pela piedade ou obras que tenhamos praticado na santidade do coração, mas através da fé, pela qual o Deus todo-poderoso justificou a todos desde sempre: a Ele, a glória pelos séculos dos séculos. Amém. I Clemente 32:3,4.

A doutrina da Graça

Paralela à doutrina da justificação, a doutrina da graça é basilar na cristandade ocidental. Sua elaboração remonta da polêmica entre Agostinho de Hipona (354–430) e os defensores do pelagianismo – doutrina na qual o ser humano é dotado de livre-arbítrio para seguir os exemplos de Cristo e superar com seus esforços os pecados. Já o bispo africano tem uma visão mais pessimista da natureza humana, a qual é dependente da graça, senão invariavelmente tende para o mal:

A Natureza foi criada sã e íntegra, mas foi corrompida pelo pecado

A natureza do homem, de fato, foi criada inicialmente sem falhas e sem pecado; mas aquela natureza do homem na qual todos nascem de Adão agora carece do Médico, por que já não é mais sã. Todas as boas qualidades, sem dúvida, que ainda possui sua criação, vida, sentidos, intelecto, resulta do Deus Altíssimo, seu Criador e Formador. Mas a falha, escurecedora e enfraquecedora todos esses bens naturais, torna necessário a iluminação e cura, não foi contraída da Criação irrepreensível, mas daquele pecado original, que se cometeu pelo livre arbítrio. Consequentemente, a natureza criminosa recebe na punição mais justa. Pois, se agora somos novas criaturas em Cristo, fomos, por tudo isso, filhos de ira, assim como outros, “mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos).”

Graça gratuita

Essa graça, no entanto, provém de Cristo, sem a qual nem bebês nem adultos podem ser salvos. Ela não é dada por nenhum motivo, mas é dada gratuitamente, por isso é também chamada graça. “Sendo justificado”, como diz o apóstolo, “gratuitamente pela sua graça”. Desse modo, eles – que não são libertados pela graça, porque ainda não conseguem ouvir, ou porque não estão dispostos a obedecer; ou novamente porque eles não receberam, no momento em que não podiam considerar suas vidas que podiam ser salvos –  foram justamente condenados com justiça. Isso deve-se por não estarem sem pecado, que neles derivam desde o nascimento, sendo adicionado por sua própria falta de conduta. “Pois todos pecaram” – por si ou por Adão – “e destituídos estão da glória de Deus”.[8]

O renascimento da ordem e pensamento agostiniano teve início no século XIII. Até o neo-tomismo passar a ser a matriz teológica oficial na virada do século XIX ao XX, a Igreja Católica Romana[9] fora mais pluralista, convivendo vários sistemas de pensamento normalmente ligados às ordens religiosas, como o tomismo dominicano, o platonismo dos cônegos italianos, o empirismo franciscano, dentre outros. Fez sentido o papa Leão X chamar o nascente movimento de Lutero como “uma querela de monges”. Ainda depois da Reforma o agostinianismo resultou em movimentos como o jansenismo e os labadistas, os quais, não é de se espantar, não diferem muito da doutrina calvinista. Como os antigos Pais da Igreja, o protestantismo em geral mantém essa pluralidade de pensamento, exceto nas denominações exclusivistas que demandam homogeneidade.

O sacerdócio universal em Cristo e a glória devida a Deus

O desprendimento individual na relação com o divino é uma marca protestante, mas não exclusiva. E a Baixa Idade Média, com uma mistura sórdida de política e religião, não foi um dos momentos mais gloriosos da Igreja Cristã. E meio aos desapontamentos com a religião hierárquica, muitos devotos encontram em práticas pessoais de religião um culto direto a Deus.

O catolicismo popular medieval, com suas devoções leigas e seus místicos, sempre foi dotado de uma religiosidade sem intermediários. E pessoas com essas mentalidades, por vezes, cooperavam em associações, como os Irmãos de Vida Comum, um movimento de beatos leigos holandeses. Os Irmãos de Vida Comum, influenciados pelo agostinianismo, copiavam e ensinavan a Bíblia, bem como propagavam práticas devocionais, a devotio moderna, na qual se insere a leitura de A imitação de Cristo.

O papel do ser humano e contato imediato com Deus também foi reavaliado pelos europeus com as grandes navegações. O encontro de indígenas gerou articulações jurídicas e teológicas para explicar suas origens, bem como a possibilidade de o pecado original e a graça os afetar. Os célebres debates de Salamanca no século XVI e as campanhas dos jesuítas no século seguinte em defesa do status de humanidade aos índios encontraram apoio no direito natural. Haveria um mínimo moral e normativo que transcenderiam as instituições (inclusive da própria instituição eclesiástica), paradoxalmente reduzindo o papel salvítico da Igreja Católica ao mesmo tempo ela engajava em campanhas missionárias globais.

Outro encontro que mexeu com a visão de mundo católica foi com cristãos e outros grupos religiosos monoteístas no Oriente. Se a familiaridade com os judeus e os infiéis muçulmanos (os quais estavam às portas de Viena) os portugueses chocaram-se com a descoberta dos “cristãos de São Tomé” na Índia, dos “cristãos de São João Batista” (na verdade, mandeus) na Mesopotâmia e de cristãos em Socotra que jamais ouviram falar do papa ou do catolicismo. E nada do esperado Prestes João. Conforme a teoria da escolha racional no mercado religioso, a mera existência de pluralidade religiosa quebra a homogeneidade imaginada.

As novas concepções sobre o ser humano e da diversidade religiosa demandavam uma nova concepção de Igreja. E desde John Wicliffe e Jan Huss havia para questão uma resposta satisfatória na doutrina da Igreja invisível[10]. A doutrina da Igreja invisível, com raízes em Agostinho, postulava a existência de uma comunidade virtual dos eleitos conhecidos somente por Deus. De outro lado, haveria uma Igreja visível, representada pelas instituições eclesiásticas. A Reforma, desde os dois predecessores, fundamentou-se nessa doutrina para não precisar de alguma forma de unidade institucional para sobreviver.

A Reforma radical – termo guarda-chuva que abriga desde grupos espirituais católicos e erasmianos que não intencionavam deixar a Igreja Católica até socianianos e anabatistas – levou a concepção de igreja invisível às últimas consequências. De um lado, anabatistas radicais como os hutteritas e os primeiros mennonitas, negavam totalmente a existência de uma Igreja invisível: a Igreja somente seria composta por convertidos que voluntariamente participavam dela. De outro lado, alumbrados e cripto-protestantes erasmianos na Espanha[11] e místicos influenciados pelos hussitas na Europa Central, como Peter Chelčický (c. 1390 – c. 1460) e Kaspar Schwenckfeld von Ossig (1490 –1561) advogavam uma Igreja totalmente interior, ligada pela experiência mística, na qual as instituições da Igreja visível tinham pouca relevância. Com essa mentalidade, abriu-se a cogitação de haver mais de uma organização como Igreja, surgindo o denominacionalismo protestante.

A própria pluralidade denominacional não é coisa nova ou invenção protestante. Para relembrar, na Europa da Baixa Idade Média houve instância de ter três papas ao mesmo tempo; dioceses com plena independência, como a de Milão, autocêfala em relação a Roma; contatos contínuos com cristãos ortodoxos no sul e leste do Mediterrâneo; movimentos populares com organizações paralelas à Igreja Católica, como os lolardos, hussitas e valdenses; movimentos ditos heréticos, como os albigenses, patarinos, bogomilos, fraticelli, dentre outros.

A Reforma (ao menos a magistral) não se considerava como um movimento restauracionista, mas sim de continuidade reformada das verdades primitivas do Evangelho. O termo “reforma” já era usado desde o século XIV com conotações positivas, principalmente pelos movimentos reformistas monacais, como o de Cluny (c. 950–c.1130), na campanha para remover as práticas e doutrinas errôneas e dar continuidade à missão da Igreja.[12] Em meio a abusos, corrupção e violência da hierarquia católica, havia movimentos moralizantes como o de Savonarola (1452 –1498) ou apregoadores de uma simplicidade evangélica como os de Francisco de Assis (1182-1226), Pedro Valdo (c. 1140 – c. 1220) e os Irmãos de Vida Comum. Com essa mentalidade reformista, alguns tiveram sucesso em permanecer dentro da hierarquia católica (os franciscanos) enquanto outros foram expelidos e perseguidos (os valdenses). Mas essa mentalidade reformista era tida como legítima. A moderada Reforma italiana centrada em Veneza (e mais radical em Nápoles e Ferrara) foi liderada por um cardeal, Gasparo Contarini (1483 – 1542), que buscava conciliar a atitude reformadora com a unidade católica, principalmente fundada na bem diversa teologia patrística e escolástica.

A antiguidade da fé Reformada era uns dos principais argumentos dos pioneiros protestantes. Heinrich Bullinger publicou em 1537 a Antiga Fé[13] uma interessante compilação de excertos dos Pais da Igreja que corroboram com os pontos doutrinários da fé protestante. Contemporaneamente, o movimento da paleo-ortodoxia, cujos expoentes foram o metodista Thomas Oden e o episcopaliano Christopher Hall, é uma volta a essa insistência da antiguidade e universalidade da ortodoxia protestante, fundamentado em uma historiografia rigorosa desde os Pais da Igreja. Em português, há as teologias de Alister McGrath e Wolfhart Pannenberg, autores influenciados por essa vertente.

Também eram antigas as práticas de culto protestante. Antes do Concílio de Trento havia várias liturgias locais, bem como cultos e confrarias com ritos próprios, como o culto do Divino Espírito Santo no sul de Portugal, depois exportado aos Açores. Tampouco era universal o culto aos santos ou o uso de imagens. Contra essas práticas pelejou no Renascimento Carolíngio o bispo de Turim Claudius (fl. 810–827), nem por isso foi excluído da comunhão da Igreja Católica. A liturgia protestante, especialmente a luterana e a anglicana, derivam de antigas liturgias locais[14], como o rito de Sarum ou o rito de Uppsala. O acesso ao cálice do vinho, mantido nas igrejas orientais e reservadas ao clero no catolicismo, era reivindicação pouco antes da época da Reforma durante a Revolta Utraquista (1419 – 1434) na antiga Boêmia.

Considerações finais

Muito da verdade foi sacrificada em guerras panfletárias tanto no campo dos católicos quanto dos protestantes, principalmente pelas narrativas triunfalistas. São narrativas com tons devocionais que exaltam feitos de “grandes homens” e de denominações, criando copiosamente lendas sem respaldo histórico. Por vezes são difundidas em escritos populares, escolas dominicais e pregações.

Uma delas é que a Igreja Católica Romana era a única igreja existente, tinha alguns abusos e Lutero corajosamente a desafiou. E com suas ideias sozinho inventou a doutrina da justificação somente pela fé e o protestantismo, martelou as 95 teses nas portas da paróquia de Wittenberg e tomou uma firme postura ao dizer “sigo minha consciência. Por isto, não posso nem quero retratar-me de nada, porque fazer algo contra a consciência não é seguro nem saudável. Esta é a minha posição”[15].

De outro lado, situado anacronisticamente no catolicismo pós-trentino, retratam Lutero como um abjeto revolucionário que desrespeitou sua igreja de nascimento por motivo mesquinho. Seria inventor de heresias e semeador das revoluções, desde a francesa até a russa.

As fontes históricas dizem de modo diverso: o humanismo e a imprensa popularizam livros até então virtualmente inacessíveis. A dispersão de sábios bizantinos que ensinavam grego, a diversificação do pensamento com redescobertas de obras de Platão e outros autores antigos, as grandes navegações que alteraram as cosmovisões já ameaçavam o status quo da Igreja Católica. Sem contar fatores internos, como cismas, questão das investiduras, os movimentos lolardos e hussitas, bem como os rampantes abusos. Teologicamente, muito das posições defendidas pelos reformadores já estavam em discussão em universidades e mosteiros. Liturgicamente, havia mais diversidade e o poder era mais difuso em matéria de eclesiologia.

Diante desses fatores, resta a Lutero o papel de uma voz, articulada e com grande alcance, de um movimento que já estava em curso e não dependeu dele para sua emergência.

NOTAS

[1] A/C 62. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo: Ensaio de uma Crítica do Cristianismo. [1895]. Tradução de Mourão. Lusofia. 2004.

[2] Os cinco solas são um sumário dos ideais comumente esposados no protestantismo. Tal lista apareceu no início do século XX proposta pelos teólogos Theorodore Engelder e Emil Brunner. São os seguintes:
1–Sola fide (somente a fé): doutrina que a fé teria maior relevância para tornar-se justo diante de Deus que as boas obras;

2–Sola scriptura (somente as Escrituras): o primado da Bíblia como fonte autoritativa de doutrina e prática;

3 – Solus Christus (somente Cristo): Jesus Cristo como o único mediador entre Deus e humanidade, decorre daí rejeitar à intercessão dos santos e à necessidade de um cabeça visível para Igreja, pois o sacerdócio seria universalmente exercido pelos crentes, sem intermediários do clero. Razão para existirem miríades de denominações protestantes sem uma preocupação em unidade organizacional.

4– Sola gratia (somente a graça): doutrina pela qual a salvação é ato discricionário de Deus, não dependendo de qualquer ação humana;

5– Soli Deo gloria (somente glória a Deus): o culto estritamente monoteísta a Deus, reduzindo a pompa litúrgica e deferências a prelados e aos santos.

[3] Deve ser relembrando que o cânon bíblico esteve aberto na maior parte do Cristianismo, sendo formando não por uma única pessoa ou uma única assembleia, mas foi um processo. Ironicamente, o mais antigo cânon foi feito por um herege, Márcion, mas já no século IV tinha mais ou menos as feições atuais, com a disputa dos deuterocanônicos. A tecnologia (no caso, a encadernação em códex e o velum) consolidou o cânon em só volume a partir de traduções como a vulgata e a peshitto. Institucionalmente, a Igreja Católica Romana somente descreveria um cânon para uso universal no Concílio de Florença (1442), mas somente a partir do Concílio de  Trento em 1546 é que foi efetivamente adotado como normativo para os católicos. E para o protestantismo uma das mais antigas formalizações institucionais do cânon foi no Sínodo Evangélico de Paris que em 1559 listou o cânon na Confissão Galicana. Os luteranos e anabatistas não sentiram a necessidade de deliberar o cânone em concílios.

[4] Por exemplo, a questão da antilegômena (autenticidade e canonicidade de alguns livros, como a Epístola de Tiago, a Epístola de Judas, 2o Pedro, 2o, 3o João, Apocalipse) estava em discussão no Renascimento. Apesar de suas opiniões sobre a canonicidade, Lutero os manteve em sua tradução. Debates de canonicidade continuaram e ainda hoje há discussões sobre a Comma Johanneum, o capítulo 8 do evangelho de João, a autenticidade das Epístolas Pastorais ou 2º Pedro na qual debatem biblistas católicos, protestantes e até seculares. Apesar disso, já se chegaram a um consenso que as Escrituras gregas do Novo Testamento correspondem aos livros universalmente usados na história e liturgia cristã, consenso aderido até por biblistas da Ortodoxia Oriental, que possuem outros livros em um cânon expandido.

[5] O problema de autenticidade das obras é antigo. É notório o caso de Galeno de Pérgamo (129-c.200 d.C.). O médico escreveu o livreto De libris propriis depois de encontrar um livro pirata com seu nome na rua dos sapateiros em Roma. Um leitor educado comprou o volume em questão e após ler duas linhas concluiu que o estilo não era o de Galeno. Para evitar a circulação de obras espúrias, Galeno publicou sua bibliografia.

[6] Uma síntese histórica do desenrolar dessa doutrina aparece em MCGRATH Alister. Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification. Nova Iorque, Cambridge University Press, 2005.

[7] Non est ergo in eis [moralibus et caeremonialibus legis] spes iustificationis, sed in sola fide, Rom. 3:28: Arbitramur justificari hominem per fidem, sine operibus legis.

[8] Agostinho. Sobre a natureza e a graça. Capítulos IIIIV.

[9] Encíclica Aeterni Patris de 1879.

[10] HUSS, Jan. De Ecclesia.c1400.

[11] MENÉNDEZ Y PELAYO, Marcelino. Historia de los heterodoxos españoles. 1880-1882.

[12] A conexão histórica das denominações cristãs ao cristianismo da Bíblia foi sempre um problema teológico. A conexão entre a comunidade visível e comunidade formada pelo imediato ministério de Jesus foi um meio de se argumentar autenticidade. São três tipos de respostas que reclamam essa ligação com o pacto neotestamentário:

1) Sucessão histórica – com suas vertentes a doutrina sucessão apostólica pelos bispos e a sucessão subterrânea por grupos marginais (guardiães remanescentes de um cristianismo puro) – reclamando uma continuidade organizacional com o cristianismo primitivo;

2) Restauracionismo, doutrina que em algum ponto da história a igreja cristã se desviou, requerendo uma intervenção especial para voltar ao cristianismo bíblico; e

3) Ligação histórica desnecessária ou a resposta existencial ao cristianismo, como em Kierkegaard, que argumenta que da mesma maneira as pessoas que viram e conviveram com Jesus Cristo e vários o abandonaram, não há necessidade lógica de encadeamento histórico entre pessoas que sequer O viram, pois a resposta à mensagem de Cristo é individual.

As igrejas nascidas da reforma magistral tendem à sucessão histórica apostólica, enquanto a reforma radical tende à sucessão marginal. Denominações nascidas na crença de uma revelação especial tendem ao restauracionismo. O Evangelicalismo encampou uma teologia da crise, na qual a terceira posição, a resposta individual ao ato de fé, é mais relevante.

[13] BULLINGER, Henrich. Der alt gloub: Das der Christen gloub von anfang der wält gewärt habe, der recht waar alt vnnd vngezwyflet gloub sye Zurique, 1544.

[14] WHITE, James F. A Brief History of Christian Worship. Nashville, TN: Abingdon Press, 1993.

[15] Sobre as lendas da posição de Lutero em Worms, das marteladas das 95 teses, dentre outras. http://www.luther.de/en/legenden/

[16]  Sobre a história da Reforma na França e Jacques Lefèvre D’Étaples, ver LÉONARD,  Émile Guilaume. A history of Protestantism. Londres: Thomas Nelson, 1967.

[17] SCHAFF, Philip. History of the Christian Church, Volume VI: The Middle Ages. A.D. 1294-1517 . Christian Classics Ethereal Library. https://ccel.org/ccel/schaff/hcc6/hcc6.iii.x.vi.html#fna_iii.x.vi-p33.2

SAIBA MAIS

GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova. 2007. No capítulo 2 desse livro, Timothy mapeia o ambiente que antecedeu a Reforma.

Como citar esse texto no formato ABNT:

Citação com autor incluído no texto: Alves (2018)

Citação com autor não incluído no texto: (ALVES, 2018)

Referência:

ALVES, Leonardo Marcondes. Reforma sem Lutero. Ensaios e Notas, 2017. Disponível em: https://wp.me/pHDzN-4Bz . Acesso em: 20 jul. 2020.

4 comentários em “A Reforma sem Lutero

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  1. Parabéns, prezado. Análise aprofundada. Mais sucintamente, esse assunto é tratado por Lebvre em “Lutero, um destino”.
    Nietzsche é sobrevalorizado, segundo minha opinião.

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    1. Toda os institutos culturais dependem de interpretação. Por isso, críticos como Habermas ou Žižek defendem um engajamento na atividade interpretativa. Os efeitos práticos das interpretações nem sempre (aliás, raramente) dependem da veracidade e coerência interpretativa, mas ainda assim suas consequências são impactantes.

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