Subdeterminação na ciência: a tese Duhem-Quine

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Apresentaram-se os fatos, têm-se a teoria que os explica, mas a realidade é contraditória. Erros de percursos? Problemas com o método científico? Seria a ciência uma forma de conhecimento falacioso?

Antes de jogar fora todo o conhecimento científico, é necessário apreciar a tese Duhem-Quine.

No breve artigo “Two Dogmas of Empiricism” The Philosophical Review 60 (1951): 20-43 o filósofo norte-americano Willard Van Orman Quine (1908–2000) apresentou suas críticas à filosofia da ciência baseada em um positivismo lógico. Essa perspectiva seria limitada, pois segundo Quine ela só aceitaria proposições verificadas (e falseadas) empiricamente.

Crítica aos dois dogmas do empirismo

Quine criticou dois pressupostos positivistas: (1) a existência de uma distinção entre juízos analíticos (verdade lógica fundada em raciocínio coerente cujos significados sejam independentes dos fatos) e juízos sintéticos (verdade fatual, fundada em fatos corrigíveis, ou seja, verificáveis e falseáveis); e o (2) reducionismo: a crença que cada enunciado científico equivale a alguma construção lógica que se referem à experiência imediata.

A distinção dos juízos remonta a Kant, o qual também distingue entre conhecimento a priori e a posteriori. Quine argumentou que proposições de conhecimento apriorístico poderiam ser ajustados depois de experiências para se manterem necessariamente lógicos e verdadeiros. Seriam como se os adeptos da teoria da abiogênese reformulassem suas teorias depois das descobertas de Pasteur. Desse modo, isoladamente um fato não corrobora ou refuta uma teoria. Consequentemente, não haveria uma possível distinção entre ciência e pseudociência.

O reducionismo da crítica de Quine é a pretensão de os positivistas lógicos transformarem eventos ou fatos em uma linguagem lógico-racional. Com esse processo considerariam o enunciado resultante como necessariamente verdadeiro, mesmo que não o provassem. Tomando o trabalho de Rudolf Carnap (1891 — 1970) como referência, Quine diz que a proposição “qualidade q está no ponto-instante x; y;z; t” não pode ser totalmente provada: o “está no” não há como ser demonstrado.

A tese Duhem-Quine: holismo epistêmico

Quine retomou as propostas do físico e filósofo da ciência francês Pierre Duhem (1861 — 1916) para a validade científica. De acordo com Duhem, uma teoria científica resulta de um conjunto de enunciados com consequências empíricas. Entretanto, a refutação de uma consequência empírica não implica necessariamente em refutar a teoria. Por exemplo, a trajetória de Urano contradizia a física newtoniana. Antes de descartar toda a teoria gravitacional de Newton foi verificado que as perturbações da rota de Urano eram devidas a um outro planeta: Netuno. Assim, o ajustamento das hipóteses auxiliares calibram a teoria inteira.

O modelo de Duhem-Quine prenuncia uma “virada holística” na qual a unidade empiricamente significativa seria o conhecimento científico como um todo.

As evidências empíricas por si sós serão sempre insuficientes. Isso decorre da refutação do reducionismo, como também demonstra o teorema da incompletude de Gödel. Além disso, há a possibilidade de premissas com erros, mas com teorias válidas. Essas limitações epistemológicas acarretariam a subdeterminação na ciência.

A subdeterminação é o conceito na filosofia da ciência de que a qualquer momento as evidências serão sempre insuficientes para determinar a teoria resultante de modo completo. Por exemplo, um conjunto de dados pode ser lido validamente com duas ou mais teorias, conforme os pressupostos diferentes de cada uma, resultando em interpretações distintas. Daí a proposta de Popper de que se não soubemos quais teorias são falsas, devemos precisar quais teorias são falsas ou passíveis de falseabilidade (serem avaliadas se verdadeiras ou falsas).

Todavia, Quine propõe que uma teoria não poderia resultar de um conhecimento prévio isoladamente, mas em conjunto com um feixe indeterminado de fatores, dos quais nem todos são prováveis em todas suas premissas. A rede de significados formariam o pano de fundo para uma teoria específica. Por exemplo, a tradução de um enunciado entre duas línguas depende da interpretação de seu significado em contexto da língua-fonte e a respectiva teia de significados contextualizado na língua-alvo. Ou seja, a tradução somente é possível quando considerando a totalidade dos sistemas linguísticos e de fundo cultural de ambas as línguas.

A tese Duhem-Quine insere-se nos trabalhos de lógica e epistemologia do pensador americano. A lógica de Quine — influenciada por (e em reação a) Russell, Whitehead, Círculo de Viena e Wittgenstein — deixou influencias a nascente lógica matemática brasileira. Quine foi professor visitante da Escola Livre de Sociologia e Política da Universidade de São Paulo entre 1942 e 1944 e em colaboração de Vicente Ferreira da Silva, escreveu e publicou em português O Sentido da Nova Lógica (1944). Seu empirismo sem dogmas coloca-o em linha da tradição pragmática americana, junto de Dewey, Rorty e Putnam.

Ainda que tenha quebrado o encanto no cientificismo, a tese Duhem-Quine (que também tem suas críticas) demonstra que há conhecimento científico válido. Uma pedra lançada em um rio perturba seu fluxo a dado instante, mas não altera seu curso.

SAIBA MAIS

Stanford, Kyle. “Underdetermination of Scientific Theory” The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.)

 

12 comentários em “Subdeterminação na ciência: a tese Duhem-Quine

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  1. Excelente explicação.
    Discordo de Quine, pois considerado que a identidade, a não contradição e a causalidade são indispensáveis à ciência.
    Se, por exemplo, a alucinação é um estado permanente, ela passa a ser a única percepção da realidade.

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    1. Seu ponto é extremamente importante. A crítica de Quine de certa forma questiona exatamente isso (mas não apresenta soluções).

      O problema de o conhecimento ser fundamentado exclusivamente em fundamento empírico suas próprias limitações. Tomando, seu exemplo, imaginemos que conheçamos empiricamente algo, mas se essa própria experiência for uma alucinação? Não falo isso como tese, uma professora minha passou uma semana doente e sendo tratada com enteógenos na Amazônia e tem coisas que ela não sabe se foi alucinação ou se aconteceram mesmo.

      Para mim, a Epistemologia Reformada de Plantinga e Alston apresenta uma visão mais satisfatória a esse problema ao rejeitar pressuposições intuitivas como premissas. Por exemplo, uma experiência mística não pode ser a priori descartada — mesmo sem haver meios de prova –, segundo a proposta da Epistemologia Reformada de Alston, pois não há evidências para sua rejeição e seus parâmetros de validação seria possível por quem compreendeu a experiência mística.

      Mas, são temas que ainda não tenho informação ou posição conclusiva. Estou trabalhando para entendê-los ainda. Por isso, suas contribuições são sempre bem-vindas.
      Leo

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      1. Olá! Sou partidário de uma visão moderadamente aristotélica, na qual o conhecimento é fundamentado em uma base axiomática.
        Porém, concordo em alguma medida com Quine, no sentido de que não existe sentença analítica pura. A lógica formal possui consequências empíricas; se assim não fosse, algo na realidade poderia violar o principio da realidade etc.

        Curtido por 1 pessoa

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