O mundo mágico de Selma Lagerlöf: realismo e fantasia

 Selma Lagerlöf foi uma das maiores escritoras do século XX, infelizmente é relativamente desconhecida do mundo de fala portuguesa.

Lagerlöf nasceu no povoado de Östra Emterwik, na província sueca de Värmland em 1858, filha de um tenente e proprietário de terras e da filha de um ferreiro bem-sucedido. Os Lagerlöf possuíam a propriedade de Mårbacka, onde Selma cresceu com seus quatro irmãos, uma tia e uma avó que contavam histórias para ela. Mas perderia a avó aos cinco anos, uma das maiores dores de sua vida, como escrevera.

Aos três anos, uma condição congênita de Selma piorou. A menina parou de andar, sendo tratada pela sua babá Cajsa que também a entretinha com lendas locais. Selma se recuperou, mas ficaria manca pelo resto da vida.

Nos plácidos bosques e lagos de Mårbacka, Selma cultivou sua imaginação combinando-a com estórias de Sir Walter Scott, as Mil e Uma Noites e Snorri Sturluson.

Apesar disso, as coisas não iam bem em Mårbacka. Seu pai acumulava dívidas e não obteve sua esperada promoção. Impossibilitada de ir à faculdade, Selma por acaso encontrou com a líder feminista Eva Fryxel que a incentivou a ser normalista em Estocolmo.

Em 1881, com apoio financeiro do irmão, Selma foi estudar em Estocolmo. Nessa época a capital e a Suécia passava por transformações drásticas. O país se tornara industrial. O avanço científico tirava a fantasia do mundo. O naturalismo de Strindberg retratava as limitações existenciais da vida moderna. Nesse ambiente, não havia espaço para as donzelas lindas e os cavaleiros corajosos do romantismo que Selma apreciava.

Cheia de imaginação, a professora Selma, lecionando História em Landskrona (sul da Suécia), não tinha tempo para verter no papel suas criações. Mas, quando foi visitar Mårbacka pela última vez, pois o pai tinha perdido a propriedade, decidiu secretamente juntar dinheiro para recuperar a herdade da família. Submeteu um manuscrito a uma revista feminina e com o prêmio passou a pensar seriamente em escrever como profissão.

O primeiro romance seria A Saga de Gösta Berling (1894). Ambientando na Värmland rural, o talentoso e negligente ex-pastor Gösta Berling lidera um grupo de malandros que vivem como hóspedes permanentes no Solar Ekeby, para o desespero da boa proprietária Margarita Samzelius que apregoa uma vida de ordem, responsabilidade e trabalho. Gösta fora salvo de morrer congelado por Margarita e se envolve com outros hóspedes excêntricos, a maior parte nobreza destituída. Aos poucos os “doze cavaleiros” tomam conta do solar. Esse épico em prosa da vida rural sueca, reune vários episódios, uns com amor romântico, outros um realismo mágico. A obra seria filmada em 1924 e encenada em ópera no ano seguinte.

O lançamento d’A Saga de Gösta Berling foi discreto, mas o livro fez sucesso logo. Um ano depois, com um estipêndio da família real e da Academia Sueca, Selma deixaria seu trabalho para dedicar integralmente à literatura.

Com a folga, Selma Lagerlöf viajou à Itália onde se inspirou para escrever Os Milagres do Anti-Cristo (1897). Nesse romance ambientado na Sicília durante o final do século XIX explora misticismo e utopias socialistas. A história começa com a chegada da imagem milagrosa de Cristo à pequena aldeia de Diamante. Mas a imagem é apenas uma cópia da imagem milagrosa de Cristo da Basílica de Santa Maria in Aracoeli em Roma. Entretanto, a imagem move as pessoas se ajudarem e construir uma estrada de ferro.

De volta à Suécia, Selma se estabeleceu em Dalecárlia, próximo a Värmland. Nessa região soube de um movimento religioso entre os camponeses no ano anterior que, esperando o iminente retorno de Cristo, venderam seus bens e se mudaram para Jerusalém. Interessada a saber mais, Selma e sua amiga Sophie Elkan viajaram à Jerusalém conhecer o grupo. Esse movimento se uniu ao ex-empresário e filantropo Horatio Spafford na Colônia Americana, um hotel e centro de assistência religiosa. Um Jó moderno, Spafford tinha perdido seus bens em um incêndio em Chicago e seus filhos em um naufrágio. Spafford se consolaria escrevendo o hino “It’s well with my soul” (traduzido ao português como “Haja Paz” ou “Sou Feliz com Jesus”). Impressionada pela religiosidade sincera desse movimento, Selma escreveria um romance sobre o grupo.

O resultado foi a obra em dois volumes Jerusalém I: Dalarna (1901) e Jerusalém II: a Terra Santa (1918). O romance tem por protagonista Ingmar Ingmarsson, o último de uma linhagem de rudes e resistente camponeses. A vida rural cíclica é alterada com a vinda de um pregador revivalista dos Estados Unidos. O fervor religioso se espalha rápido entre as entre os devotos camponeses. Após algumas experiências religiosas, os crentes passaram a acreditar que devam ir a Jerusalém. Com uma perspectiva realista e mística, Selma Lagerlöf retrata bem seu tempo nesse romance. Apesar de não criticar o movimento e retratá-lo em um tom até jornalístico, Selma não demonstra aprovação a esse fervor. O livro foi filmado como série de TV e filme em 1996.

A próxima obra de sucesso de Lagerlöf seria O Imperador de Portugália (1914). O camponês Jan tem uma vida devotada à sua única filha da velhice, mas quando ela parte para a cidade para trabalhar e salvar o sítio da família, o pobre homem fica delirante. Por fim, ao não aceitar o descaminho de sua filha, Jan se imagina como pai da Imperatriz de Portugália, onde bate sol e cresce laranjas. Entretanto, as coisas complicam quando a filha retorna à vila. Também a obra foi filmada.

Um professor comissionou Selma a escrever um livro de geografia para crianças, o resultado foi A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson (1906). O livro, pioneiro em um gênero que reúne ficção com didática de assuntos “sérios”, (como depois faria Monteiro Lobato com sua Geografia de Dona Benta), narra a viagem do menino Nils nas costas de um ganso sobre toda a Suécia, misturando contos de fadas e geografia. O livro ainda marcaria o início do uso da nova ortografia sueca, ainda em uso. Nils se tornaria um dos personagens infantis mais populares do século XX, tendo várias reedições e desenhos animados.

Selma Lagerlöf escreveria ainda romances, contos e memórias, com temas desde fantasias, histórias góticas, lendas sobre Cristo, poemas e sagas familiares. Seus livros seriam traduzidos em mais de 50 línguas, inclusive alguns em português.

Com sua renda autoral, Selma Lagerlöf pode comprar novamente a herdade de Mårbacka e voltar a morar em sua amanda terra. Apesar de sua vida de leitura e escrita no campo, Selma se manteve ativa em outras áreas. Teve por um tempo um posto de gasolina na região, receberia ainda um título de Doutora Honoris Causa da Universidade de Uppsala, se envolveria na política local, fazendo campanhas para o sufrágio feminino e sendo eleita vereadora. Hoje, sua imagem é honrada na nota de 20 coroas suecas.

Seu estilo detalhista, misturando um retrato realista sem abandonar uma fantasia plena de imaginação, fez dela a primeira mulher laureada com o prêmio Nobel da literatura (1909) e a primeira mulher eleita para a Academia Sueca (1914).

 

5 comentários em “O mundo mágico de Selma Lagerlöf: realismo e fantasia

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  1. Puxa, encontrei as outras duas pessoas além de mim que eu pensei que tivessem lido Selma Lagerlöf no Brasil. Ela é ótima e de fato, praticamente inédita em nosso país

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  2. Selma mostrou o poder feminino e lutou por seus direitos até conquista-lo, seja qual fosse obstáculo ela acabou superando e serviu de exemplo para muitos.

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