A diferença entre ciências sociais e humanidades

 

Os Ministério da Educação e Cultura (MEC)  e Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) [1] emprega uma classificação fosca sobre as disciplinas enfocadas no ser humano e seu produto, sob as designações de “ciências humanas”, colocando sob a mesma ordem disciplinas como teologia e antropologia. Neste ensaio, aponto alguns tópicos de diferença entre “ciências sociais” e “ciências humanas”.

Ciências sociais e humanas são interligadas, usufruem de um diálogo proveitoso, mas são distintas.

Deve-se reconhecer que é uma tarefa árdua classificar áreas tão multiformes, com metodologias e objetos tão distintos (como a psicologia e a filosofia), às vezes cruzando com outras áreas do conhecimento, como o caso da geografia física — na qual o ser humano como objeto de estudo praticamente inexiste.  Há ainda o fator da interdisciplinaridade, o conhecimento não está engavetado em categorias totalmente distintas. Todavia, a classificação do CNPq-MEC, que é utilizada na alocação departamental das instituições de ensino brasileiras, não demonstra ser criteriosa no que consiste ser ciência.

De acordo com o CNPq a grande área do conhecimento das “ciências humanas” compreenderiam a antropologia, arqueologia, ciência política, educação, filosofia, geografia, história, psicologia, sociologia, teologia. Outras áreas independentes das “ciências humanas”, porém subordinadas a elas, seriam as ciências sociais aplicadas; a arte; a linguística, as letras e as línguas.

As “ciências sociais aplicadas” na nomenclatura do CNPq são vastas quanto a escopo e metodologias: direito, administração, economia, arquitetura e urbanismo, demografia, gastronomia, ciência da informação (onde entra a biblioteconomia), museologia, serviço social, comunicação (entre outras, o jornalismo e as relações públicas), economia doméstica, programação visual, desenho industrial ou de produto (design), turismo, hotelaria.

Como se constata, segundo o CNPq haveria uma íntima relação entre cozinhar um ovo e defender um condenado à morte.

A presente classificação das áreas do conhecimento pelo CNPq é falha no tocante às ciências sociais e ciências humanas principalmente porque ignora a definição fundamental de ciência.

Ciência e Disciplina

Ciência não é uma mera coleção de fatos organizada sistematicamente, nem a análise de conceitos. Baseado nos pressupostos de Bacon e Popper (princípios de experimentação controlada e falseabilidade, respectivamente) eliminamos a filosofia e a teologia da categoria “ciências”. Por mais que essas disciplinas possuam rigorosos critérios de trabalhos, suas próprias existências baseiam-se em fontes não experimentais. No caso da teologia cristã partimos da autoridade revelada (com ênfase nas Escrituras para o protestantismo e a Tradição para o catolicismo) e emprega a fé como elemento epistemológico e há pouca possibilidade de uma verificação crítica desse conhecimento teológico. Embora, sejam conhecimentos legítimos dentro das humanidades (ou divindades), não constituem uma ciência.

Ainda relacionado à religião, o CNPq passa por cima das ciências da religião[2] tal maneira faz com outros campos interdisciplinares, a exemplo o estudos do gênero (estudos femininos, queer theory), a gerontologia e os estudos de área como os estudos americanos, estudos brasileiros, estudos nipônicos, estudos africanos e outros.

As humanidades (como são chamadas na Europa, América do Norte e praticamente no mundo todo) não seriam ciências, mas sim disciplinas do conhecimento humano. Seu método de trabalho é a análise da produção cultural humana, principalmente em forma de discurso — é o método erudito bibliográfico e documental de pesquisa[3]. Aí estão a história, a filosofia, o direito, as artes, as letras, linguística (filologia) e a teologia (a compreensão humana sobre a divindade). Em seu trabalho rotineiro, o humanista debruça sobre textos e a hermenêutica é uma das principais ferramentas de investigação.

Já as ciências sociais são ciências, pois utilizam métodos experimentais e são sujeitos à refutabilidade. Experimentos controlados em laboratórios, entrevistas, observações de campo são modos para o cientista social obter dados de primeira mão. Empregam no sentido lato o método científico de pesquisa. As ciências sociais compreendem a antropologia, sociologia, psicologia, economia, ciências políticas, demografia, educação, serviço social, estudos culturais, linguística (aplicada e antropológica), geografia (excetuando seus subcampos físicos como hidrologia, meteorologia, climatologia).

A raiz dessa confusão terminológica no Brasil talvez viria de uma má tradução dos conceitos de GeisteswissenschaftenNaturwissenschaft do filósofo da ciência alemão Wilhelm Dilthey. Essas distinções entre “ciências do espírito” e “ciências da natureza” refletiam nas propostas não positivistas e positivistas de ciências, respectivamente. Fora das ciências do espírito estariam as artes; mas estariam inclusos o direito, a teologia, a filologia, a história, as ciências sociais, a psicologia e a filosofia. As ciências da natureza reuniriam as disciplinas empíricas. Entretanto, com o desenvolvimento de metodologias específicas de base empíricas das ciências sociais, da história e da filologia; o critério de fundamento empírico se diluiu. Hoje, essa distinção nos países de língua alemã é mais histórica, com departamentos universitários, organizações acadêmicas e instituições científicas agrupadas em disciplinas mais especializadas que nesses dois grandes conjuntos.

Há outros estudos profissionais ou aplicados que não são ciências, mas aplicam o conhecimento gerado pelas ciências sociais e humanidades como a comunicação, o turismo, a museologia e a cartografia.

Convite à reclassificação

Recentemente (2005), o CNPq propôs uma revisão de sua classificação das grandes áreas do conhecimento, mas em termo práticos, nada altera quanto as ciências sociais e humanidades. Algumas poucas vozes insistem na distinção, como o avaliador do CAPES e filósofo da USP Renato Janine Ribeiro distingue:

“Conceitualmente, entendo humanidades, antes de mais nada, como não sendo ciência. Há clara diferença entre o termo ciências humanas e sociais e o termo humanidades. As ciências trabalham com uma idéia de verdade, ainda que enfraquecida. (…) A ciência “progride”. Há novas descobertas que colocam em xeque as anteriores, muitas vezes não as refutando, mas matizando-as. (…) Já nas humanidades, há uma permanência do passado, e esse é o ponto principal. Elas se caracterizam, ao meu ver, por constituírem um patrimônio.”[5]

Talvez pelo fato dessa classificação ter consequências em divisões departamentais, concursos, candidatura de bolsas, aparentemente não há reação do mundo acadêmico brasileiro sobre essa categorização. Todavia, uma discussão e reavaliação seria importante, pois afinaria nossa concepção de ciência, aproximaria com as definições internacionalmente aceitas [4] e ampliaria as áreas de trabalho dos profissionais em humanidades e ciências sociais.

O conceito é bem simples, ciências sociais estudam o ser humano enquanto as humanidades estudam a produção humana. Por esse motivo o MEC precisa redefinir sua classificação.

NOTAS

[1] http://www.cnpq.br/documents/10157/186158/TabeladeAreasdoConhecimento.pdf

[2] Ou estudos da religião, embora o termo alemão Religionwissenschaft parece o mais preciso para mim. A ciências da religião é interdisciplinar, tanto humanística (ex. a análise de um texto sacro) quanto social (sociologia da religião).

[3] Em inglês Scholarly method of research.

[4] Protocolos do CORDIS, o qual classifica as ciências em Portugal.

[5] Coelho,  Bruna et al.  “Entrevista a Renato Janine Ribeiro”. em Revista Humanidades em Diálogo, Volume 1, Número 1, novembro de 2007. pp. 18-19.

11 comentários em “A diferença entre ciências sociais e humanidades

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  1. Olá! Seu artigo indica que tem mais, talvez muito mais gente que tem dificuldade com essa classificação do CNPq; ainda bem, pois eu já estava me sentindo alguém incapaz de entender uma coisa tão “lógica”! Então, talvez, você tenha uma resposta: conhece algum autor publicado no Brasil que sistematize a pesquisa humana (humanidades, como você diz)? Lázara Coelho

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  2. Olá, Leonardo! Só completando a mensagem anterior: se tiver algum autor que tenha o fundamento, o método etc. da pesquisa humana, por favor, me informe. Grata, Lázara Coelho.

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  3. Olá Leonardo! Sou museóloga já formada e só agora comecei a entender pq ela está na área de Ciências Sociais aplicadas! Realmente não é fácil isso….
    Obg

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